terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Autoridade hierarquizada vs. autonomia na educação formal


Poucas instituições são tão hierarquizadoras quanto as instituições de ensino oficial – sejam elas da Educação Básica ou da Educação Superior. Independentemente das perspectivas agógicas (isto é, pedagógicas, hebegógicas, adagógicas, gerentogógicas etc) adotadas pela instituição ou pelo professor, a educação formal sempre se baseia na dependência dos estudantes para com um eixo hierárquico de autoridade – autoridade esta que pode se centrar na figura do próprio professor, dos textos escolares/acadêmicos, das tradições que modelam a sociedade, etc. O fato é que, por mais que neguemos isso, a educação institucionalizada, de modo geral, faz muito pouco para ajudar os estudantes a se tornarem realmente autônomos – e isso desde a mais tenra idade.

Lembro-me de quando comecei a ensinar numa determinada escola pública nova iorquina há cerca de uma década atrás. Discutíamos um de meus temas favoritos em História dos EUA – o chamado “Movimento pelos Direitos Civis” (o segundo, de meados do século XX) –, e três de meus alunos fizeram uma reclamação formal a meus superiores por eu os estar “forçando” a ler outras coisas e a ouvir testemunhos de visitas que trouxe à sala, enquanto deixava de lado o livro didático de história. Seu argumento era que eu estava tirando deles a oportunidade de estudarem o “currículo oficial” e se prepararem para as provas aplicadas pelo Departamento de Educação do Estado (felizmente, meus superiores discordaram da opinião daqueles alunos!).

Aquele incidente me deixou extremamente perturbado por algum tempo. Perturbei-me porque a reclamação, aparentemente, partira dos próprios alunos, e não de seus pais. Mesmo sendo apenas três deles – os considerados mais brilhantes da turma –, aquilo mostrava a compreensão que tinham do que deveríamos fazer em sala: eles seriam apenas receptores dum conhecimento acabado, e eu não passava dum transmissor. Ficava me perguntando o que tínhamos (a escola) feito com aqueles adolescentes para que rejeitassem a oportunidade de chegarem às suas próprias conclusões por meio do conhecimento de outras opiniões que podiam diferir do que o livro didático lhes oferecia. Aqueles estudantes, no final das contas, só estavam seguindo o que a escola os adestrara a fazer: sigam as regras, repitam o que “aprenderam”, e tudo estará bem!

Aquele incidente, para mim, retrata bem o efeito que a mentalidade autoritária pode ter na percepção que estudantes têm de seu valor e capacidades – e isso ocorre igualmente na Educação Superior. Frequentemente, a escola/universidade parece treinar pessoas para que sejam excelentes repetidores do que já foi dito e feito, mas incapazes de criar algo novo a partir daquilo que supostamente aprenderam. Nas humanidades, por exemplo, professores se esforçam para ensinar o que, para eles, é certo; mas não esperam de seus estudantes a capacidade de apresentarem um alto nível de discordância – isto é, uma discordância que apresente argumentos bem fundamentados, de acordo com a capacidade e experiência do estudante.

Esse problema da autoridade na educação me faz lembrar da questão do 2+2. Como gosto de dizer, 2 + 2 nem sempre é igual a 4. Esse resultado sempre dependerá da escala de medida que utilizamos (se nominal, ordinal, intervalar, ou de razão). E apenas nas escalas intervalar e de razão o resultado será 4. O motivo pelo qual pensamos que 2+2 é sempre igual a 4 é porque, na escola, a maioria de nós apenas utilizou a escala de razão.

Se nem com a matemática podemos atingir um produto que sempre será inquestionavelmente correto, o que dizer das humanidades?... É justamente por isso que prefiro que os estudantes sejam capazes de chegar a conclusões próprias (mesmo que pessoalmente não concorde com elas), construindo seus argumentos por meio da análise das evidências, comparando seus argumentos com aqueles que a instituição escolar lhes impõe, do que ensiná-los a aceitar a “tradição” sem questioná-la. Quem sabe um dia as escolas e as universidades não se tornarão templos da autonomia, espaços onde discordar construtivamente seja mais importante que marcar a opção “correta” em provas padronizadas... Sonho com esse dia!

Gibson

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Da docência das humanidades, especialmente da História, na Educação Básica


Sempre senti um desconforto em definir minha atuação num campo intelectual específico. Isso porque as humanidades – isto é, aquele grande campo no qual se encontram as áreas mais específicas de minhas formações e interesses intelectuais (a Teologia, a História, a Filosofia, a Ciência Política, a Economia, as Artes e os Estudos Linguísticos) – estão tão entrelaçadas a ponto de tornar a construção de muros isoladores entre suas diferentes áreas uma impossibilidade, ao menos em minha compreensão pessoal.


Esse entrelaçamento cria o ambiente para minha renúncia ao mito duma formação e atuação isolacionista daqueles que pesquisam e ensinam as chamadas “ciências humanas/sociais”; o tipo de atitude isolacionista proposto pelos ativistas de grupos corporativistas, que anseiam por uma forma de privilégio profissional deveras mítico para um adepto da interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade como eu.


Pensando sobre o ensino de História na escola, não posso deixar de afirmar a necessidade que o/a professor/a tem de estar familiarizado/a com conceitos indispensáveis à construção duma compreensão social. Conceitos esses advindos de muitas áreas distintas, como a Sociologia, a Antropologia, a Economia, a Filosofia etc, e que são utilizados em nossos estudos históricos e, consequentemente, em nosso ensino da história escolar – aquela imposição absurda, que a sociedade faz aos alunos da Educação Básica, de informações históricas, em aulas com pouca duração, daquilo que os professores demoraram pelo menos quatro anos para aprender superficialmente de forma mais concentrada. Ensinar História a estudantes da Educação Básica pode tornar-se, assim, um desafio enorme para qualquer professor/a que leve seu trabalho à sério.


Assim, vejo a necessidade de os professores/as de História, mas não apenas de História, serem incentivados a ampliarem sua própria compreensão teórica para que possam levar seus alunos a ampliarem seu repertório de questionamentos históricos. Isso significa, dentre tantas outras coisas, que, por exemplo, devamos evitar a aceitação de respostas óbvias e a imposição de visões políticas unilaterais em aula – tornando nossa posição de privilégio em sala uma espécie de palanque político, como é tão comum em aulas de História (ou em todas as aulas escolares).


Dessa forma, ensinar sobre o capitalismo, por exemplo, só deixará de ser uma apologia à nossa própria visão de mundo (seja ela pró ou anticapitalista), se nós mesmos nos esforçarmos para compreender a historicidade do capitalismo – e o mesmo é válido no que tange ao socialismo.


Por isso, vejo meu papel pedagógico como aquele de um provocador ou mediador na experiência de aprendizado do/a estudante. Antes de ser aquele que possui as respostas para todas as suas questões, prefiro ser aquele que os provocará a ponto de buscarem suas próprias respostas – mesmo que essas impliquem conclusões às quais eu mesmo não chegaria. Isso, obviamente exige um grande esforço de aprendizagem do lado do próprio docente.


Não poderíamos servir como mediadores no aprendizado das causas que levaram à emergência da al-Qa'ida contra os Estados Unidos, por exemplo, se nós mesmos não estivermos familiarizados com o pensamento do jihadismo islâmico e suas diferenças para com o pensamento islâmico ortodoxo. Do contrário, correríamos o risco de classificar ou aceitar a identificação por parte dos alunos do Islã com o terrorismo, como se todo muçulmano fosse necessariamente um terrorista em potencial (e mesmo a utilização dos termos “terrorismo” e “terrorista” dependeriam duma compreensão teórica para um uso informado).


O mesmo pode ocorrer quando tratamos sobre temas que estão mais imediatamente entrelaçados com nossas experiências pessoais, envolvendo nossa compreensões morais. Um exemplo recorrente no Brasil é a forma como muitos professores, e alguns materiais didáticos, por exemplo, lidam com a história mais recente do país. O exemplo mais imediato que me vem à mente é o refrão repetido de acusação ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso como uma forma de agente do “neoliberalismo”, enquanto o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva é frequentemente pintado como uma espécie de herói nacional. Já me perguntei o que um/a professor/a responderia se lhe pedisse uma definição teórica do “neoliberalismo – a maioria dos que já ouvi oferecendo tal definição, o identificaram (o “neoliberalismo”, isto é) com a privatização, e só. Outros professores conseguem impor a seus alunos uma visão forçosamente classista da história, como se apenas essa compreensão fosse suficiente para lidar com a complexidade do universo social.


Essa simplificação exagerada da realidade, que, em minha opinião, é motivada pela antiquada e paternalista visão do/a professor/a como um ator/atriz social messiânico/a, só pode ser vencida pela ampliação dos horizontes intelectuais daquele/a que tem a sala de aula como seu campo de atuação profissional. Um/a professor/a de História deve ser capaz de questionar a realidade social de forma intelectualmente mais sofisticada do que aquele grupo de amigos sem a mesma formação acadêmica na mesa de bar. Ele/a deve ser capaz de questionar suas próprias convicções, de avaliar seu uso semântico, de encontrar paralelos no universo sociocultural e etário de seus alunos, para que, assim, possa servir de mediador. Essa, ao menos, tem sido minha experiência, mesmo que meus colegas nem sempre concordem comigo.


Manter nosso repertório teórico atualizado é um desafio por nossa carga conteudística ser elevada. Enquanto um/a professor/a do Ensino Superior frequentemente ocupa-se de campos muito específicos duma grande disciplina acadêmica, seu/sua colega da Educação Básica é responsável em lidar com o todo da disciplina que leciona exigido para aquele nível educacional. Assim, um professor de História na Educação Básica que lecione em todas as séries do Ensino Fundamental II ou do Ensino Médio, lida com a história das origens dos seres humanos até o hoje, nos níveis global, nacional, regional e local, e sobre questões referentes a grupos étnicos específicos, por exemplo – independentemente de sua formação e de seus interesses intelectuais. Isso exige um esforço intelectual provavelmente inimaginável para a maioria dos/as professores/as de História do Ensino Superior. Mas como esse foi um desafio que supostamente aceitamos no decorrer de nossa formação, temos de fazer o melhor que pudermos para vencê-lo; e esse melhor exige, no mundo perfeito, um esforço para nos mantermos atualizados no que tange tanto à nossa área disciplinar quanto às questões pedagógicas propriamente ditas.


Essa exigência que é feita dos/as professores/as da Educação Básica deveria, aliás, ser suficiente para eliminar o preconceito tido por muitos dos/as docentes do Ensino Superior contra o papel do/a docente da Educação Básica. Em minha experiência, ser um bom professor generalista, o que poderia se esperar dos/as professores/as da escola, exige um esforço muito maior (em todos os campos possíveis da vida pessoal) do que aquele que é normalmente exigido dum/a professor/a que atua numa área especializada do Ensino Superior. Os desafios que enfrentamos incluem não apenas um conhecimento ao menos panorâmico de todos os conteúdos tratados no nível escolar que ensinamos (se é que isso é realmente possível), como também um instrumental necessário para ajudar nossos alunos a se engajarem com assuntos que geralmente lhes parecem distantes e desinteressantes.


É por isso que não posso definir meu campo de atuação pedagógica ou intelectual numa área específica das humanidades. Para mim, elas estão inerentemente entrelaçadas, devendo viver num jardim de convivência comum. Para ensinar História, por exemplo, preciso de conceitos advindos de outras áreas, preciso estar atento ao mundo de hoje, ao mesmo tempo em que devo ser cuidadoso para não cair nas armadilhas do anacronismo. Isso não é nem um pouco fácil, mas é o que torna as chamadas “Ciências Humanas e Suas Tecnologias” fascinante para mim.

Gibson