PERGUNTAS PROBLEMATIZANTES E O SEMINÁRIO SOCRÁTICO NA PEDAGOGIA INQUISITIVA
Gibson
da Costa
Enquanto professores, podemos nos engajar tanto com a tarefa de fazer
perguntas que não investimos muito tempo em analisar por quê e como
o fazemos. Mas, se analisássemos as perguntas que fazemos durante
uma aula, poderíamos nos surpreender com os resultados encontrados.
Provavelmente, descobriríamos que a maioria de nossas perguntas são
feitas unicamente para sabermos se um aluno sabe ou não um certo
item daquilo que lhe foi “ensinado”. Descobriríamos, assim, que
elas carregam uma expectativa de apenas testar a memória de nossos
alunos. E esse tipo de perguntas, infelizmente, não se restringe
apenas àquelas que lhes são feitas oralmente em aulas, mas incluem,
principalmente, aquelas presentes nos tradicionais modelos de provas
escritas que muitas vezes aplicamos nas escolas. A boa notícia é
que nossas perguntas podem e devem fazer muito mais do que apenas
testar a memória dos alunos.
Fazer
perguntas é um instrumento essencial tanto para a construção do
pensamento quanto das relações humanas. E, na educação, perguntas
são indispensáveis. Dentre tantas outras razões, enquanto
professores, perguntamos para testar a memória dos alunos, para
obter informações, para expressar e estimular interesse e
curiosidade, para incentivar a participação, para detectar
dificuldades, para encorajar comentários, para desafiar certezas,
para questionar asserções, para desempenhar o papel do “advogado
do diabo” etc. Fazer perguntas, ao menos no que tange ao professor
na pedagogia inquisitiva, é uma habilidade que se baseia em saber
decidir sobre o quê e quando perguntar.
Neste
texto – uma continuação do tema abordado anteriormente sobre o
ensino-aprendizagem inquisitivo –, abordarei o papel desempenhado
por um tipo específico de perguntas na pedagogia inquisitiva. O
mesmo destina-se àqueles professores da Educação Básica que
queiram adotar uma prática de articulação aberta de diferentes
pontos de vista por parte dos alunos, especialmente através da
utilização de seminários socráticos,
especificamente na área das Ciências Humanas e Suas Tecnologias
(Filosofia, Geografia, História e Sociologia).
Tipos
de perguntas
Na
pedagogia inquisitiva, perguntar exige mais do que construir
perguntas que possam ser respondidas com uma única palavra, ou
simplesmente com “sim” ou “não”. Assim, a ação de
perguntar torna-se um processo de questionar, de problematizar.
Há diferentes sistemas para a classificação de perguntas, com
muitos deles baseando-se nas tradicionais categorias listadas na
Taxonomia de Objetivos Educacionais (1956), de Benjamin S.
Bloom. Nas ciências humanas, por exemplo, um desses sistemas as
categoriza em perguntas que apelam à memória, compreensão,
aplicação, análise, síntese e avaliação (classificação de
Clegg, Farley, e Curran); outra, as categoriza como sendo de apelo à
memória, tradução – i.e., transformação da informação em
diferentes formas ou linguagens simbólicas –, interpretação,
aplicação, análise, síntese e avaliação (classificação de
Norris Sanders). Aqui, não intenciono lidar com tamanha complexidade
tipológica; assim, utilizarei uma classificação didática
exageradamente simplificada que categoriza as perguntas em
problematizantes
e não-problematizantes.
Desde
já, reconheço a limitação desta tipologia. Utilizo
essa classificação simples
com meus alunos da educação básica e superior, para ajudar-lhes
a avaliar
os tipos de
perguntas
que utilizamos
em nossas discussões em sala, e
acredito que
a mesma possa
ajudar-nos, enquanto professores, a começar a refletir sobre o tipo
de perguntas que fazemos a nossos alunos em sala.
Se,
posteriormente, você quiser aprofundar-se no tema, descobrirá que
há excelentes pesquisas acadêmicas sobre o papel desempenhado pelas
perguntas na educação escolar.
Na
tipologia que utilizo especificamente neste texto, os seguintes são
os sentidos que atribuo aos termos perguntas
problematizantes e perguntas não-problematizantes:
Perguntas
problematizantes são aquelas que ajudam a identificar,
interpretar e avaliar perspectivas e relações; analisam eventos,
tendências e problemas significativos; e reconhecem, interpretam e
julgam forças que causam mudanças e contribuem com a continuidade.
Com elas, não esperamos respostas específicas, já que as mesmas
servem como convite à discussão e ao compartilhamento de múltiplas
ideias. Esse tipo de questionamento, ou melhor, de problematização,
é possível e necessário em todos os níveis da educação escolar
(seja na educação básica ou na superior), e em todos os
componentes curriculares. No caso específico das chamadas ciências
humanas (Filosofia, Geografia,
História e Sociologia – e também Religião), assim como das
linguagens e códigos (Língua
Portuguesa, Literatura, Arte, e níveis mais avançados de Línguas
Estrangeiras), esse tipo de questionamento é indispensável.
Perguntas
não-problematizantes
são aquelas que buscam dados e informações específicas sobre um
determinado tema, podendo ou devendo ser respondidas com “sim/não”
ou com detalhes apropriados à expectativa
da pessoa que a elaborou.
Com
este tipo de perguntas, geralmente não abrimos espaço à discussão
de ideias ou argumentações discordantes. Apesar
de elas não serem úteis a atividades que envolvam discussão de
argumentos e ideias, são úteis se o que quisermos for testar se os
alunos lembram-se de informações ou dados específicos.
A
razão primordial para a ênfase em perguntas problematizantes na
pedagogia inquisitiva é porque fazer e responder esse tipo de
perguntas oferece um foco para a pesquisa e a investigação, e ajuda
a pensar criticamente. Esse tipo de questionamento promove a
curiosidade, encoraja a criatividade e leva a mais perguntas. Por
serem respondidas de forma “aberta”, isto é, por não possuírem
respostas “certas”, encorajam compreensões mais profundas e
exigem decisões e julgamentos que possam se apoiar em evidências ou
critérios específicos.
Como
criar perguntas problematizantes?
Mas,
reconhecendo seu valor e importância para a pedagogia inquisitiva,
como podemos criar tais perguntas? Há modelos que podem ser
seguidos, por aqueles que não estão acostumados a utilizar tais
tipos de perguntas em sala, para iniciar a utilização de perguntas
problematizantes com seus alunos?
Para
refletirmos sobre a tipologia proposta aqui das perguntas em
problematizantes e não-problematizantes, permita-me
exemplificar com uma experiência real. Numa unidade sobre imigração
e identidade nacional, em História dos Estados Unidos, numa de
nossas aulas, meus alunos se engajaram num seminário socrático
no qual discutiram alguns textos extraídos da imprensa, das leis e
de pronunciamentos políticos acerca do papel desempenhado pelo
inglês e pelo espanhol naquele país – na verdade, haviam levado
seleções de textos escritos selecionados por mim para ler em casa,
pesquisaram sozinhos outros textos e, em sala, vimos alguns trechos
em vídeo de pronunciamentos políticos. Como costumeiro, nos focamos
em debater alguns dos aspectos que eles consideravam importantes nos
argumentos utilizados por grupos políticos e movimentos sociais que
buscam a oficialização da língua inglesa no âmbito federal.
Aqui,
não poderia incluir aqueles textos utilizados como base para nossas
discussões, já que esse não é o objetivo deste texto. Mas,
importa informar que, por exemplo, a Constituição dos Estados
Unidos, diferentemente da brasileira, não estabelece uma língua
oficial para o país. Assim, ao menos constitucionalmente, o governo
federal dos EUA não pode se negar a oferecer seus serviços em
outras línguas aos seus cidadãos que não falem inglês. Lembre-se
que há muitas regiões nos EUA onde um grande número de cidadãos
não falam inglês – por exemplo, o sul da Flórida, regiões
metropolitanas como as de Nova York, Boston, Chicago, Los Angeles;
áreas do Novo México, Arizona, Texas, etc. Assim, em diferentes
momentos da história do país, tem havido um grande investimento no
oferecimento de serviços federais em outras línguas (especialmente
espanhol). Entretanto, inúmeros estados têm tornado o inglês sua
língua oficial em suas constituições, em resposta ao fluxo
migratório especialmente de hispanofalantes; e, especialmente nos
últimos anos, muitos grupos têm defendido o mesmo para o governo
federal. Todo o conflito em torno do papel do inglês e de outras
línguas minoritárias no país tem existido desde a independência
das colônias britânicas que formariam os Estados Unidos, ou seja,
trata-se dum problema de longa data. Foi sobre isso que tratamos em
nossas discussões em sala.
Agora,
como exercício, imagine-se naquela turma. Imagine haver levado os
textos para casa, lido-os, selecionado algumas reportagens da
imprensa e ter assistido aos breves vídeos em sala, preparando-se
para a discussão que seguiria. Imagine que tivesse de propor uma
pergunta para o início de nosso seminário socrático em sala.
Agora, das perguntas que sugiro abaixo, quais, em sua opinião,
poderiam ser classificadas como problematizantes (i.e.,
facilitadoras duma discussão à qual a multiplicidade de ideias
fossem bem-vindas) e por quê?
Qual é a língua oficial dos Estados Unidos?
Por que, em sua opinião, não há menção a uma língua oficial na
Constituição dos EUA?
O inglês é definido em alguma outra lei como língua oficial dos
Estados Unidos?
A Constituição dos EUA deveria declarar o inglês como língua
oficial? Por que sim, ou por que não?
Em sua opinião, qual a maior vantagem e/ou desvantagem em a língua
inglesa não ser declarada como oficial na Constituição dos EUA?
Quantos cidadãos dos Estados Unidos não falam inglês? Que
evidências você pode apresentar para confirmar os números que
apresenta?
Até que ponto não declarar uma língua como oficial põe em risco
as tradições nacionais de um Estado? Você pode apresentar alguma
evidência para sua posição?
Todos os cidadãos norte-americanos falam inglês como língua
materna?
Você
consegue imaginar a pergunta nº 1 servindo como base
para o início bem-sucedido duma discussão crítica numa aula de
História ou Sociologia, por exemplo? E o que dizer sobre a questão
proposta antes da enumeração das perguntas (…das
perguntas que sugiro abaixo, quais, em sua opinião,
poderiam ser classificadas como problematizantes
[...] e por quê?)?
Perceba
que o tamanho do enunciado não necessariamente indica que a pergunta
levará o aluno a uma reflexão sobre o tema proposto, muito menos a
uma discussão de ideias. A pergunta de nº 3, e a
dupla pergunta de nº 6, por exemplo, são
comparativamente extensas, mas apelam apenas à memória do aluno,
exigindo como resposta um dado ou informação presente em algum
texto ao qual supostamente tenha tido acesso (texto que poderia ser
escrito ou audiovisual, no caso do material que utilizamos de base
para aquela discussão).
Note,
também, a incidência de por que
associado a outras expressões, como em “por que sim ou não?”, e
de em sua opinião, ou de expressões
semelhantes (como em “até que ponto...?”), nas perguntas que
levam o aluno a formular uma opinião própria. Nem sempre, contudo,
um “por que?” indica uma pergunta problematizante, já que o
mesmo poderia apenas estar fazendo referência a uma resposta que não
exija a formulação de opiniões e argumentos próprios. Por
exemplo, poderíamos perguntar “Por que nem todos os cidadãos
americanos falam inglês?”, e, quase certamente, poderíamos
esperar respostas como “porque nem todos nasceram nos Estados
Unidos”, ou “porque há muitos imigrantes e filhos de
imigrantes no país”, ou ainda, “porque muitas
pessoas têm deficiência auditiva e, por isso, não falam inglês”.
Nenhuma dessas respostas, contudo, evidencia um esforço crítico por
parte do aluno, nem facilita o início duma discussão de ideias.
Lembre-se
que, na tipologia simplificada que utilizei aqui, perguntas
problematizantes são aquelas que, necessariamente, levam a
discussões e ao compartilhamento de múltiplas perspectivas. Assim,
os enunciados das perguntas levantadas devem deixar claro que o que
se espera dos alunos é que expressem suas ideias, suas perspectivas,
com base, por exemplo, nos textos (escritos, pictóricos,
audiovisuais etc) que serviram de base para a discussão.
Outras
considerações
Algo
que devemos sempre ter em mente quando nos engajamos com a pedagogia
inquisitiva – especialmente se fazemos uso, por exemplo, de
seminários socráticos – é o fato de que o que importa não
é o número de perguntas feitas, mas sua qualidade para os objetivos
que estabelecemos. Quando fazemos perguntas problematizantes –
perguntas que estimulam o pensamento e, consequentemente, levam os
alunos a produzir respostas mais longas –, a velocidade das aulas
diminui. Isso significa que menos “matéria” é coberta em aulas
como essas, apesar de, provavelmente, o que for tratado o ser de
forma mais ampla. Ademais, os alunos possivelmente discutirão ideias
não previstas pelo professor, o que exige não apenas uma preparação
cuidadosa, como também um senso de humildade para reconhecer que não
sabemos tudo.
Num
seminário socrático com turmas da Educação Básica, por exemplo,
alguns cuidados devem ser tomados. Se por um lado, o planejamento é
indispensável, por outro não pode servir de “camisa de força”
para as discussões em sala. Ao mesmo tempo em que devemos ter
questões formuladas previamente para guiar a discussão, também não
devemos servir de empecilho aos questionamentos levantados pelos
alunos – desde que pertinentes ao tema tratado –, já que é
justamente para que desenvolvam essa habilidade questionadora que
utilizamos seminários socráticos.
Outro
ponto importante a considerar é o da compreensão que o próprio
professor tem de sua identidade profissional e do componente
curricular que ensina. Se o professor se vê como uma autoridade
inquestionável em sala, que exerce a função de “transmissor”
de conhecimentos e descreve seu trabalho como sendo “dar aulas”,
então, provavelmente, nada do que escrevi até agora fará sentido
ou funcionará. Ademais, especialmente no caso das ciências humanas,
se também enxerga o componente curricular que ensina de forma
dogmática, compreendendo suas próprias perspectivas (digamos, uma
escola filosófica, uma perspectiva política, uma tradição
sociológica específica etc) como sendo inquestionáveis, facilitar
a discussão livre de ideias contradirá sua visão de mundo e,
possivelmente, será uma experiência não muito fácil.
O
tema do papel desempenhado pelas perguntas no ensino-aprendizagem em
geral e, especialmente na pedagogia inquisitiva, tem sido muito
pesquisado no campo da Educação nos últimos cinquenta anos. Aqui,
quis apenas ajudar meus leitores e leitoras a refletirem um pouco
sobre o tema de forma simplificada. Ainda voltarei a este tema no
futuro.