quarta-feira, 7 de outubro de 2015

O devaneio a-histórico da "pureza" cultural

Em se tratando de cultura, poucas coisas me aborrecem mais do que a conversa entediante sobre “pureza” (isto é, a qualidade de ser sem corrupção, infecção, imperfeição, mixagem etc) que alguns insistem em levantar. Aquele devaneio a-histórico de que haja uma “cultura pura”, uma “língua pura”, um “estilo puro”, etc, é absurdo e idiótico. Não é à toa que mantenha uma relação tão estreita com noções racialistas e de supostas “purezas étnicas” – por exemplo, a ideia de que haja uma “cultura brasileira” pura e original, ou de que alguém deva ter “orgulho de ser brasileiro/sulista/nordestino”!

Aliás, a ideia duma brasilidade “pura” serve de modelo quase perfeito para a demonstração da fraqueza do “argumento” a favor da ideia de pureza cultural/étnica. Lembro-me das muitas vezes que vi/assisti/ouvi/li (especificamente nos E.U.A., no Reino Unido e na Dinamarca), anúncios turísticos vendendo o Brasil como a terra da praia, do samba, da cerveja, e do futebol – isso para não incluir aqui o apelo sexual feito por muitos daqueles anúncios. Refletindo os esteriótipos repetidos no dia a dia brasileiro, aqueles anúncios vendem ao público internacional – especialmente na América do Norte e na Europa –, mas também o fazem no Brasil a brasileiros, a imagem dum “povo” que aprecia e consome aqueles “presentes” como se não houvesse um amanhã!... O problema é que há milhões de brasileiros que não conhecem o mar – o que implica que não vão à praia (banhada pelo Atlântico) –, e inúmeros outros que não gostam de samba, de cerveja ou de futebol!

Desde a infância, os brasileiros aprendem, na escola e fora dela, o mito sobre uma formação étnica tripartite: os “brasileiros” (O que é isso, a propósito? Um pedigree?) adviriam do mix de três grupos/raças – a saber os [amer]índios, os portugueses e os africanos! [Mesmo com todas as reformas curriculares já feitas, isso ainda permanece!] Esse povo falaria apenas português. Professaria e praticaria apenas as fés cristã (e apenas em suas formas ocidentais), candomblecista e umbandista... Esqueçam que mais de duzentas línguas são faladas no Brasil, por brasileiros – e que muitos brasileiros, no Brasil, não falam português. Esqueçam que muitos brasileiros não professam ou praticam aquelas expressões religiosas majoritárias. Esqueçam os muitos brasileiros que não portam um sobrenome português ou luso-brasileiro, mas que têm apenas o Brasil como lar, até porque é o único país que conhecem!... O que são eles, afinal? Marcianos caminhando sobre a “Terra do Vale Tudo”?

...Essa é a imbecilidade da etiquetagem de seres humanos em categorias artificiais – um dos resultados da “a-historicidade” (porque trata-se duma negação da experiência histórica humana) de noções de “pureza” cultural/ética.

Essas noções de “pureza” têm uma ligação com muitas dos comentários que ouço, por exemplo, no que concerne à música, à literatura e à própria língua. Os comentários que engrandecem a MPB, o samba, o forró, etc, quando comparados a outras formas musicais – como o rock, o pop, o funk, a EDM etc –, como se esses fossem os “originais representantes” da brasilidade ou, pelo menos, da musicalidade brasileira, se sustentam sobre o equívoco de que a “cultura” seja imutável, permanente. A ideia de que se está desvirtuando a arte literária quando, por exemplo, uma obra canônica tem sua linguagem “atualizada” para um público jovem assenta-se sobre uma compreensão equivocada tanta da historicidade linguística quanto da “natureza” da arte literária (e já tratei disso aqui). E todos esses equívocos baseiam-se numa perspectiva de que a humanidade e suas criações – sim, a “cultura” é uma criação humana, ela não “caiu do céu”! – possam ser congelados ou petrificados no tempo e no espaço.

O mais interessante é observar que os defensores dessas ideias utilizam os meios digitais contemporâneos – criações de nosso tempo – para defender um retorno à pureza mítica. Quanta incoerência!… Que sejamos salvos dessa obsessão por “pureza” cultural/étnica!

+Gibson

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Avaliar não é o mesmo que testar: um protesto pessoal!


Gibson da Costa

Sempre fui contrário aos testes escolares tradicionais como forma de “avaliação” da aprendizagem dos alunos. Para mim, enxergar aquele tipo de teste como forma única e/ou necessária de avaliar a aprendizagem é um equívoco irreconciliável com minha visão de educação. Educar não é despejar informações numa caixa e esperar que o estudante as retire durante um momento de testagem. Essa compreensão antiquada e autoritária de educação e de avaliação – como bem demonstram pesquisas sobre currículo e avaliação, especialmente aquelas associadas a Jay McTighe e Grant Wiggins, por exemplo – limita a real avaliação da aprendizagem e contribui muito pouco para o desenvolvimento da autonomia pessoal/intelectual do estudante.

O grande obstáculo, contudo, é que a maioria daqueles que são responsáveis pela administração do trabalho do professor discordam de minha oposição aos testes tradicionais. Na verdade, a maioria dos próprios estudantes e de seus pais acreditam que fazer testes, e “sair-se bem neles”, é a mais adequada forma de medição de aprendizagem e de sucesso educacional. Então, é comum que alguns sintam-se desconfortáveis com atividades “alternativas” aos testes tradicionais como forma de avaliação. E mesmo quando o “teste” é remodelado – já que, muitas vezes, é obrigatório – para dar uma voz maior ao pensamento do próprio estudante, ou para incitar sua criatividade, já recebi ao menos os olhares reprovadores.

Eu, como alguém com sérias limitações de concentração e foco, sei o quão inútil e prejudicial pode ser ter minha aprendizagem avaliada por meu desempenho em testes e provas – que ocorrem em momentos e lugares, para mim, inoportunos. Assim, trazendo essa autoconsciência, não poderia exigir daqueles a quem ensino algo que eu mesmo teria problemas para enfrentar com “sucesso”. Minha própria experiência ao longo da vida me condiciona a abraçar outras compreensões do que seja e de como deva ser processada a avaliação de aprendizagem.

Recentemente, lidando com a testagem obrigatória dum tema específico em História (a organização urbana das colônias da América espanhola) no correspondente ao Ensino Médio, resolvi realizar uma atividade mais prática – mas que também envolvesse textos escritos. A atividade se estendeu por dois diferentes dias. A turma deveria ler, em casa, uma fonte histórica (as “Ordenações Reais para a Construção de Novas Cidades”, de 1573), projetar uma nova cidade seguindo as regras estabelecidas no documento; e, individualmente, escrever sobre os valores e ideias que estavam por trás daquela visão urbanística (previamente, havíamos discutido o tema em sala e lido textos a respeito):

1) A turma se organizou em grupos de 4;
2) dei a cada grupo um mapa duma área desabitada, e uma cópia das “Ordenações Reais para a Construção de Novas Cidades” (1573), nº 110 – 135;
3) os grupos deveriam seguir as ordenações e, primeiramente, decidir sobre o tamanho e a localização da praça;
4) decidir onde seriam as ruas;
5) determinar as localizações dos prédios principais;
6) determinar outras características;
7) na aula seguinte, deu-se a parte escrita – o “teste” propriamente dito –, no qual cada estudante, individualmente, escreveu sobre as razões, os valores e as ideias por trás daquela visão/organização urbanística.

Os estudantes fizeram referências às suas leituras anteriores e às discussões que desenvolvemos em sala; basearam sua produção na leitura de fontes históricas; trabalharam sua imaginação criativa e diferentes tipos de inteligência para planejar uma cidade e desenhar um mapa; trabalharam sob a pressão do tempo; e fizeram tudo isso por meio da cooperação em suas equipes.

Como isso poderia ser inferior a um teste escrito com questões de múltipla escolha ou qualquer outro tipo de perguntas?... O que eles e elas fizeram, em minha visão, avaliou muito bem sua aprendizagem!...

Mas não foi exatamente isso que alguns pais e alguns de meus colegas pensaram. Para eles, talvez, a aprendizagem daqueles jovens só teria sido realmente avaliada se tivessem respondido a questões objetivas capazes apenas de testar sua memória para supostos fatos históricos. Tive de defender minha posição diante dum comitê burocrático!... Uma redução escandalosamente distante do que tantas pesquisas sobre currículo, avaliação, e aprendizagem apontam sobre o que poderia, deveria ocorrer e realmente ocorre no processo de ensino-aprendizagem.

Depois dessa última experiência com os debates sobre avaliação no ambiente real de trabalho, sinto-me ainda mais comprometido com minha antiga posição anti-testagem!

quarta-feira, 18 de março de 2015

Língua, Literatura, Ensino: uma resposta a Ana


Querida Ana,

Você levanta alguns questionamentos interessantes sobre o papel que desempenhamos na sala da aula e, especificamente, sobre nosso papel enquanto professores de componentes curriculares específicos. Gostaria, contudo, de me deter um pouco sobre o ensino linguístico e literário na escola, já que ambos partilhamos dessa experiência.

Você já parou para refletir sobre suas próprias experiências e habilidades linguísticas? Por exemplo, como foi sua experiência estudando português ou inglês na escola e na educação superior? Você já teve a oportunidade de experienciar a língua – seja o português ou o inglês – num ambiente cultural diferente do seu? E qual o seu conhecimento sobre os processos cognitivos que se efetuam para que aprendamos uma língua, por exemplo? Penso que quando trabalhamos com o ensino de línguas, incluindo línguas estrangeiras, refletir sobre nossas próprias experiências pode abrir o caminho para que reflitamos sobre as experiências dos estudantes aos quais ensinamos.

No que tange ao português, uma das possíveis razões que poderíamos apontar para que o ensinemos na escola é, simplesmente, o fato de que esse é um direito dos estudantes. E, em minha opinião, esse direito se refere não apenas a aprender a chamada norma-padrão da língua (que muitos reduzem à perspectiva que abraçam de “gramática”) na escola, mas a compreender e apreciar, também, o papel da variação linguística em nossa vida social. É importantíssimo lembrar que cada estudante – na realidade, cada um de nós – pertence a várias comunidades linguísticas simultaneamente, ao mesmo tempo em que possui um repertório linguístico unicamente seu (aquilo que chamamos de “idioleto”). Assim, por exemplo, meu uso linguístico reflete minha herança cultural, meu ambiente social e, principalmente, meu mundo interior: i.e., se você acompanhar minha fala e minha escrita, perceberá que a maneira como faço uso da língua tem características próprias, distintas daquelas de outras pessoas; e o mesmo ocorre com você mesma e com aqueles a quem ensina.

Todas as vezes que converso com um estudante de Letras ou com um professor de língua portuguesa, questionando-o sobre as razões que o levaram a se engajar na área, ouço respostas semelhantes. Geralmente, a razão apontada é seu amor à Literatura. A maioria daqueles com os quais converso (sei que não é o caso de todos os outros) aponta seu amor pela leitura como a principal razão por haver escolhido estudar e ensinar português. Ser formado em Letras, assim, significaria se engajar com Literatura – o que não deixa de ser uma redução exagerada tanto do papel do professor de língua quanto do próprio campo de estudo.

O problema com essa visão do “amor à Literatura”, entretanto, é que, na maioria das escolas brasileiras, o papel desempenhado pelo estudo literário é deveras reduzido. Some-se a isso o fato já conhecido de a maioria das escolas não possuir uma biblioteca bem suprida de livros literários básicos. Logo, alguém que resolve se tornar professor de língua portuguesa, por conta desse suposto amor à Literatura, terá oportunidades muito reduzidas para se dedicar ao ensino de Literatura nas escolas da educação básica – o que é uma infelicidade para qualquer profissional da área.

Em se tratando do ensino de Literatura, entretanto, há outros obstáculos a serem considerados e que podem nos ajudar a refletir sobre seu ensino-aprendizagem na escola. O principal deles diz respeito à própria “natureza” da escrita literária. Os autores dos textos literários não os compuseram para que os mesmos fossem estudados na escola. Então, por que os alunos são forçados a estudá-los nas aulas de português ou Literatura, sem que consideremos sua (falta de) habilidade em lidar com textos literários, especialmente os clássicos? Por que esperar que estudantes – muitas vezes advindos dum background sociocultural no qual a leitura não se faz presente – do Ensino Médio, por exemplo, consigam lidar com textos de Machado de Assis (escritor por cujas obras sou apaixonado), quando sequer tiveram contato com textos literários de sua própria época previamente?

Em muitos países, uma alternativa é a apresentação da literatura clássica de forma simplificada, nas séries fundamentais, para então apresentar as composições originais mais tarde na escola. Isso pode ser muito vantajoso em certos contextos. No Brasil, entretanto, o ensino literário é ainda encarado de forma deveras tradicionalista – o que dificulta o letramento literário da maioria dos estudantes que, reconheçamos, não tem acesso aos livros. É só lembrar do que ocorreu no ano passado, com a polêmica sobre o projeto de Patrícia Secco oferecer uma versão “simplificada” de “O Alienista” de Machado de Assis. Seus críticos, que provavelmente vivem numa realidade sociocultural bem distinta daquela da maioria das crianças e adolescentes brasileiros, foram impiedosos em muitos de seus comentários nos meios de comunicação. Para eles, só haveria uma porta para o universo da Literatura: o texto tal como foi composto – independentemente de quantos seriam deixados de fora!

Aquela questão pode nos fazer pensar sobre inúmeros temas, que têm uma relação com a forma como vemos o problema: nossa visão de humanidade, nossa visão política, nossa visão do processo de ensino-aprendizagem, nossa visão do papel da escola, nossa visão dos papeis desempenhados pela escrita e pela Literatura, nossa visão linguística, e tantos outros pontos. Quando ensinamos, seja lá qual for o componente curricular, carregamos conosco um universo inteiro de conceitos e preconceitos que terão um impacto sobre a forma como desempenhamos nosso papel pedagógico. Assim, o que fazemos e o que deixamos de fazer, a maneira como nos relacionamos com estudantes e outros professores, a forma como ensinamos e aquelas formas que rejeitamos utilizar em nosso ensino, etc, têm uma origem nos conceitos e preconceitos que abraçamos.

Seja como for, por mais que a visão que abraço seja, na prática, rejeitada pela maioria de meus colegas, me oponho abertamente aos elementos residuais de elitismo ossificado em nossos sistemas de ensino e testagem. E isso se aplica não apenas ao ensino linguístico e literário, como a todos os demais componentes curriculares de nossas escolas.

Agradeço por seus comentários e participação no fórum.

Grande abraço!

Gibson

quinta-feira, 12 de março de 2015

Hora de testar o Teste!



Gibson da Costa



A crítica oferecida por Propaganda, em sua brilhante canção “Bored of Education”, à irrelevância da forma como esperam que testemos os estudantes é válida para, talvez, a maioria dos sistemas educacionais do mundo. É certamente válida para o brasileiro.

Sempre considerei a obsessão em testar estudantes como uma forma de patologia institucional. E o pior é que essa “patologia” é forçosamente internalizada por novas gerações de professores.

Testar e avaliar não são sinônimos necessários. Aplicar um teste não é o mesmo que avaliar a curva de aprendizagem dum estudante. Isso é ainda mais verdadeiro se o teste em questão mensura apenas a capacidade do estudante memorizar dados, que muitas vezes, para eles, se mostram irrelevantes em suas próprias vidas.

Por que, por exemplo, se ensina/estuda Filosofia na escola? Será que há uma razão mais ampla do que simplesmente aprender listas de autores, obras e escolas de pensamento? E se há, por que, então, aplicaríamos testes objetivos – de múltipla escolha – nos quais seriam testados apenas a lembrança desses dados? A mesma questão pode ser feita sobre todos os demais componentes curriculares da escola.

Reforçando o que diz a letra da canção de Propaganda, “não podemos procurar no Google quando a Magna Carta foi assinada?

Por que definiríamos o desenvolvimento escolar de nossos estudantes com base em seu desempenho num momento específico no qual são testados? Não podemos esquecer que as notas que recebem como recompensa/punição por seu desempenho não consideram as circunstâncias nas quais são testados: o desconforto físico do local, do assento; o calor ou frio; o barulho; as condições emocionais do estudante; o(s) tipo(s) de inteligência(s) mais desenvolvida(s) em seu caso, etc. Assim, essas notas não podem representar plenamente – nem perto disso – a mudança que realmente possa ter se operado na aprendizagem dos estudantes.

Como, no mundo real de nossas escolas, somos obrigados a aplicar testes/provas, então o que nos resta é nos esforçarmos para que os testes que impomos aos nossos estudantes sejam capazes de produzir mais que apenas memorizadores de dados.

Afinal de contas, nossos testes são um reflexo de nossa compreensão de mundo e da educação!... E uma salva a Propaganda por nos lembrar disso!

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Xingamentos e conflitos: o início dum novo ano letivo


Há pouco mais de uma semana, numa escola nova – e bem diferente do privilegiado ambiente sociocultural ao qual estava acostumado em minha escola prévia –, iniciei o ano letivo. Uma turma, em especial, tornou-se o retrato dos novos desafios para minha vida como professor naquela nova realidade. Nosso primeiro encontro foi barulhento, mas bastante frutífero. Desenvolvemos uma discussão em pequenos grupos sobre algumas frases provocadoras. Eram adolescentes, alunas e alunos do primeiro ano do Ensino Médio, sendo jovens barulhentos. Apesar de eu ter ouvido alguns comentários negativos sobre a turma um dia antes de nosso primeiro encontro, tudo funcionara como esperado.

Uma semana depois, a cena era bem diferente. O barulho era perturbador, apesar de minhas tentativas de “trazê-los” à aula. Pareciam sequer se importar com o fato de haver um professor em sala. A maioria dos alunos e alunas daquela turma parecia nunca ter aprendido noções básicas de bons modos em casa ou na escola. Uma voz ergueu-se do fundo da sala com um xingamento torpe, e, segura de que não seria punida, acrescentou: “É mais fácil que você perca seu emprego do que eu seja mandada pra casa!”. Não preciso dizer que fui tomado duma irritação anormal para uma personalidade como a minha.

No momento em que aquilo aconteceu, um zilhão de pensamentos pareciam correr por minha mente. Uma cadeia de possíveis ações e consequências invadiram meu raciocínio, como que servindo de justificativa e condenação para qualquer coisa que eu fizesse. Finalmente, lembrei-me que ela não poderia estar com raiva de mim, já que não me conhecia; e, apesar de suas palavras e ações terem sido desrespeitosas, seu desrespeito não era contra minha pessoa em si, mas, no máximo, contra o papel que desempenhava ali, impondo-lhe um tipo de conhecimento que não via como necessário.

Não pedi que deixassem a sala – ela e os outros barulhentos que não apreciavam o “perder o tempo com aula de Filosofia”. Por mais fraco que isso possa parecer a outros professores, para mim seria como dizer àqueles jovens – especialmente à garota que me xingara – que eu desistiria deles facilmente.

Fugindo ao meu plano de aula, pedi-lhes, como desafio, que se imaginassem mortos e escrevessem um epitáfio para seus túmulos, como se fora um amigo ou parente próximo escrevendo sobre eles. Poucos o fizeram, mas os que foram escritos e compartilhados levantaram uma discussão interessante sobre a consciência de si. Apenas nos últimos minutos de aula voltei ao que ocorrera e deixei claro que aquele fora um comportamento inaceitável, já que fora um desrespeito não só a mim quanto ao resto da turma.

Hoje, um dia depois do incidente, a Coordenação Pedagógica – que fora informada sobre o que ocorrera – levou-me de volta àquela sala e repreendeu vigorosamente a turma pelo ocorrido. Eles foram forçados a me pedir desculpas. Confesso que me senti extremamente desconfortável com a cena, mas, ao mesmo tempo, compreendo porque aquilo foi feito.

Apesar de aquele incidente, em particular, estar no passado, ele se junta a outros tantos que já tive com alunos ao longo dos anos. E a pergunta que sempre me vem à tona é “como lidar com comportamentos indisciplinados, com sentimentos de frustração ou com a demonstração de raiva por parte dos estudantes?” Será que deveríamos encará-los como uma afronta a nós, ou seria “sintoma” de outra coisa?

Como tudo em nossas relações interpessoais, não há uma resposta única e válida para todas as circunstâncias. Ademais, nem sempre seremos capazes de dar a resposta adequada à situação durante o incidente – pelo menos, isso é verdade em minha experiência pessoal. Pessoalmente, penso que o que me resta, o que espero ser capaz de fazer, é dar uma resposta madura e emocionalmente inteligente aos problemas das relações com outras pessoas. E isso é algo que nunca deixo de aprender em minha vida como professor.

Gibson

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

"Fahrenheit 451": Ainda um de meus filmes favoritos...



Filme completo aqui: https://www.youtube.com/watch?v=y-5KUImubtY

Sobre o filosofar...


O que Fernando Savater escreve sobre o processo de filosofar se aplica, igualmente, à minha compreensão do processo de ensino-aprendizagem. Por isso, reproduzo suas palavras abaixo:


Filosofar não deveria ser sair de dúvidas, mas entrar nelas. É claro que muitos filósofos – e até dos maiores! – cometem às vezes formulações peremptórias que dão a impressão de já ter encontrado respostas definitivas às perguntas que nunca podem nem devem “fechar-se” por inteiro intelectualmente […]. Vamos agradecer-lhes suas contribuições, mas não seguir seus dogmatismos. Há quatro coisas que nenhum bom professor de filosofia deveria esconder de seus alunos:
  • primeira, que não existe “a” filosofia, mas “as” filosofias e, sobretudo, o filosofar. […] Há uma perspectiva filosófica (em face da perspectiva científica ou da artística), mas felizmente ela é multifacetada;
  • segunda, que o estudo da filosofia não é interessante porque a ela se dedicaram talentos extraordinários como Aristóteles ou Kant, mas esses talentos nos interessam porque se ocuparam dessas questões de amplo alcance que são tão importantes para nossa própria vida humana, racional e civilizada. Ou seja, o empenho de filosofar é muito mais importante do que qualquer uma das pessoas que bem ou mal se dedicaram a ele;
  • terceira, que até os melhores filósofos disseram absurdos notórios e cometeram erros graves. Quem mais se arrisca a pensar fora dos caminhos intelectualmente trilhados corre mais risco de se equivocar; e digo isso como elogio e não como censura. Portanto, a tarefa do professor de filosofia não pode ser apenas ajudar a compreender as teorias dos grandes filósofos, nem mesmo contextualizadas em sua devida época, mas sobretudo mostrar como a intelecção correta dessas ideias e raciocínios pode nos ajudar hoje a melhorar a compreensão da realidade em que vivemos. A filosofia não é um ramo da arqueologia e muito menos simples veneração de tudo o que vem assinado por um nome ilustre. Seu estudo deve nos render alguma coisa mais do que um título acadêmico ou um certo verniz de “cultura elevada”;
  • quarta, que em determinadas questões extremamente gerais aprender a perguntar bem também é aprender a desconfiar das respostas demasiado taxativas. Filosofamos partindo do que sabemos para o que não sabemos, ou melhor, repensando e questionando o que acreditávamos já saber. Então nunca podemos tirar nada a limpo? Sim, quando pelo menos conseguimos orientar melhor o alcance de nossas dúvidas ou de nossas convicções. Quanto ao mais, quem não for capaz de viver na incerteza fará bem em nunca se pôr a pensar.

SAVATER, Fernando. As perguntas da vida. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p.209-210.

domingo, 18 de janeiro de 2015

Jornalistas e o campo da História


Gibson da Costa

Se você for professor de História ou historiador (sim, porque, para mim, os dois não são sinônimos) já está familiarizado com a tensão entre historiadores e jornalistas que escrevem livros com temática histórica. A disputa por espaço editorial, por parte dos historiadores, é antiga (e, em minha opinião, sem sentido) e tem levado, muitas vezes, à desqualificação das publicações de jornalistas por parte de historiadores. A verdade é que, enquanto o trabalho de pesquisa e escrita acadêmica dos historiadores é fundamental e indispensável, os jornalistas preenchem o vácuo em termos de divulgação dessas pesquisas para um público não especializado. O resto é conversa de gente invejosa ou ciumenta (leia-se, historiadores que não se esforçam para escrever para o público fora dos círculos universitários)!

Apesar de minha formação no campo da História (nas graduações e na pós-graduação) e de minhas pesquisas, não me considero um historiador (diferentemente da identidade imposta pela pressão regulamentatória dos profissionais da área no Brasil). Sou, simplesmente, um professor que faz uso das pesquisas feitas por historiadores em meu ensino – como, a propósito, também o fazem professores-pesquisadores que ensinam História na universidade. Isso todos nós temos em comum com os jornalistas que escrevem sobre temática histórica.

Independentemente das críticas que se possam fazer a certos aspectos das obras escritas por jornalistas, devemos reconhecer que ao menos sua linguagem faz um imenso favor à divulgação historiográfica. Especialmente quando pensamos no público alcançado pelas mesmas. Quando penso nas obras de Laurentino Gomes, só para citar um exemplo, e no interesse que as mesmas despertam em adolescentes que, de outra forma, não se interessariam pelos temas de seus livros, a importância da divulgação ao público não universitário se torna clara.

A seguinte entrevista desse autor ao “Roda Viva”, sobre a qual poderia fazer muitos comentários (positivos ou não), pode ajudar a desfazermo-nos de alguns dos estereótipos atrelados ao trabalho jornalístico no campo da História. Vale a pena assistir!


quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Ensino-aprendizagem Inquisitivo e as Ciências Humanas e Suas Tecnologias na Educação Básica (2)


PERGUNTAS PROBLEMATIZANTES E O SEMINÁRIO SOCRÁTICO NA PEDAGOGIA INQUISITIVA

Gibson da Costa

Enquanto professores, podemos nos engajar tanto com a tarefa de fazer perguntas que não investimos muito tempo em analisar por quê e como o fazemos. Mas, se analisássemos as perguntas que fazemos durante uma aula, poderíamos nos surpreender com os resultados encontrados. Provavelmente, descobriríamos que a maioria de nossas perguntas são feitas unicamente para sabermos se um aluno sabe ou não um certo item daquilo que lhe foi “ensinado”. Descobriríamos, assim, que elas carregam uma expectativa de apenas testar a memória de nossos alunos. E esse tipo de perguntas, infelizmente, não se restringe apenas àquelas que lhes são feitas oralmente em aulas, mas incluem, principalmente, aquelas presentes nos tradicionais modelos de provas escritas que muitas vezes aplicamos nas escolas. A boa notícia é que nossas perguntas podem e devem fazer muito mais do que apenas testar a memória dos alunos.

Fazer perguntas é um instrumento essencial tanto para a construção do pensamento quanto das relações humanas. E, na educação, perguntas são indispensáveis. Dentre tantas outras razões, enquanto professores, perguntamos para testar a memória dos alunos, para obter informações, para expressar e estimular interesse e curiosidade, para incentivar a participação, para detectar dificuldades, para encorajar comentários, para desafiar certezas, para questionar asserções, para desempenhar o papel do “advogado do diabo” etc. Fazer perguntas, ao menos no que tange ao professor na pedagogia inquisitiva, é uma habilidade que se baseia em saber decidir sobre o quê e quando perguntar.

Neste texto – uma continuação do tema abordado anteriormente sobre o ensino-aprendizagem inquisitivo –, abordarei o papel desempenhado por um tipo específico de perguntas na pedagogia inquisitiva. O mesmo destina-se àqueles professores da Educação Básica que queiram adotar uma prática de articulação aberta de diferentes pontos de vista por parte dos alunos, especialmente através da utilização de seminários socráticos, especificamente na área das Ciências Humanas e Suas Tecnologias (Filosofia, Geografia, História e Sociologia).


Tipos de perguntas

Na pedagogia inquisitiva, perguntar exige mais do que construir perguntas que possam ser respondidas com uma única palavra, ou simplesmente com “sim” ou “não”. Assim, a ação de perguntar torna-se um processo de questionar, de problematizar. Há diferentes sistemas para a classificação de perguntas, com muitos deles baseando-se nas tradicionais categorias listadas na Taxonomia de Objetivos Educacionais (1956), de Benjamin S. Bloom. Nas ciências humanas, por exemplo, um desses sistemas as categoriza em perguntas que apelam à memória, compreensão, aplicação, análise, síntese e avaliação (classificação de Clegg, Farley, e Curran); outra, as categoriza como sendo de apelo à memória, tradução – i.e., transformação da informação em diferentes formas ou linguagens simbólicas –, interpretação, aplicação, análise, síntese e avaliação (classificação de Norris Sanders). Aqui, não intenciono lidar com tamanha complexidade tipológica; assim, utilizarei uma classificação didática exageradamente simplificada que categoriza as perguntas em problematizantes e não-problematizantes. Desde já, reconheço a limitação desta tipologia. Utilizo essa classificação simples com meus alunos da educação básica e superior, para ajudar-lhes a avaliar os tipos de perguntas que utilizamos em nossas discussões em sala, e acredito que a mesma possa ajudar-nos, enquanto professores, a começar a refletir sobre o tipo de perguntas que fazemos a nossos alunos em sala. Se, posteriormente, você quiser aprofundar-se no tema, descobrirá que há excelentes pesquisas acadêmicas sobre o papel desempenhado pelas perguntas na educação escolar.

Na tipologia que utilizo especificamente neste texto, os seguintes são os sentidos que atribuo aos termos perguntas problematizantes e perguntas não-problematizantes:

Perguntas problematizantes são aquelas que ajudam a identificar, interpretar e avaliar perspectivas e relações; analisam eventos, tendências e problemas significativos; e reconhecem, interpretam e julgam forças que causam mudanças e contribuem com a continuidade. Com elas, não esperamos respostas específicas, já que as mesmas servem como convite à discussão e ao compartilhamento de múltiplas ideias. Esse tipo de questionamento, ou melhor, de problematização, é possível e necessário em todos os níveis da educação escolar (seja na educação básica ou na superior), e em todos os componentes curriculares. No caso específico das chamadas ciências humanas (Filosofia, Geografia, História e Sociologia – e também Religião), assim como das linguagens e códigos (Língua Portuguesa, Literatura, Arte, e níveis mais avançados de Línguas Estrangeiras), esse tipo de questionamento é indispensável.

Perguntas não-problematizantes são aquelas que buscam dados e informações específicas sobre um determinado tema, podendo ou devendo ser respondidas com “sim/não” ou com detalhes apropriados à expectativa da pessoa que a elaborou. Com este tipo de perguntas, geralmente não abrimos espaço à discussão de ideias ou argumentações discordantes. Apesar de elas não serem úteis a atividades que envolvam discussão de argumentos e ideias, são úteis se o que quisermos for testar se os alunos lembram-se de informações ou dados específicos.

A razão primordial para a ênfase em perguntas problematizantes na pedagogia inquisitiva é porque fazer e responder esse tipo de perguntas oferece um foco para a pesquisa e a investigação, e ajuda a pensar criticamente. Esse tipo de questionamento promove a curiosidade, encoraja a criatividade e leva a mais perguntas. Por serem respondidas de forma “aberta”, isto é, por não possuírem respostas “certas”, encorajam compreensões mais profundas e exigem decisões e julgamentos que possam se apoiar em evidências ou critérios específicos.


Como criar perguntas problematizantes?

Mas, reconhecendo seu valor e importância para a pedagogia inquisitiva, como podemos criar tais perguntas? Há modelos que podem ser seguidos, por aqueles que não estão acostumados a utilizar tais tipos de perguntas em sala, para iniciar a utilização de perguntas problematizantes com seus alunos?

Para refletirmos sobre a tipologia proposta aqui das perguntas em problematizantes e não-problematizantes, permita-me exemplificar com uma experiência real. Numa unidade sobre imigração e identidade nacional, em História dos Estados Unidos, numa de nossas aulas, meus alunos se engajaram num seminário socrático no qual discutiram alguns textos extraídos da imprensa, das leis e de pronunciamentos políticos acerca do papel desempenhado pelo inglês e pelo espanhol naquele país – na verdade, haviam levado seleções de textos escritos selecionados por mim para ler em casa, pesquisaram sozinhos outros textos e, em sala, vimos alguns trechos em vídeo de pronunciamentos políticos. Como costumeiro, nos focamos em debater alguns dos aspectos que eles consideravam importantes nos argumentos utilizados por grupos políticos e movimentos sociais que buscam a oficialização da língua inglesa no âmbito federal.

Aqui, não poderia incluir aqueles textos utilizados como base para nossas discussões, já que esse não é o objetivo deste texto. Mas, importa informar que, por exemplo, a Constituição dos Estados Unidos, diferentemente da brasileira, não estabelece uma língua oficial para o país. Assim, ao menos constitucionalmente, o governo federal dos EUA não pode se negar a oferecer seus serviços em outras línguas aos seus cidadãos que não falem inglês. Lembre-se que há muitas regiões nos EUA onde um grande número de cidadãos não falam inglês – por exemplo, o sul da Flórida, regiões metropolitanas como as de Nova York, Boston, Chicago, Los Angeles; áreas do Novo México, Arizona, Texas, etc. Assim, em diferentes momentos da história do país, tem havido um grande investimento no oferecimento de serviços federais em outras línguas (especialmente espanhol). Entretanto, inúmeros estados têm tornado o inglês sua língua oficial em suas constituições, em resposta ao fluxo migratório especialmente de hispanofalantes; e, especialmente nos últimos anos, muitos grupos têm defendido o mesmo para o governo federal. Todo o conflito em torno do papel do inglês e de outras línguas minoritárias no país tem existido desde a independência das colônias britânicas que formariam os Estados Unidos, ou seja, trata-se dum problema de longa data. Foi sobre isso que tratamos em nossas discussões em sala.

Agora, como exercício, imagine-se naquela turma. Imagine haver levado os textos para casa, lido-os, selecionado algumas reportagens da imprensa e ter assistido aos breves vídeos em sala, preparando-se para a discussão que seguiria. Imagine que tivesse de propor uma pergunta para o início de nosso seminário socrático em sala. Agora, das perguntas que sugiro abaixo, quais, em sua opinião, poderiam ser classificadas como problematizantes (i.e., facilitadoras duma discussão à qual a multiplicidade de ideias fossem bem-vindas) e por quê?

  1. Qual é a língua oficial dos Estados Unidos?
  2. Por que, em sua opinião, não há menção a uma língua oficial na Constituição dos EUA?
  3. O inglês é definido em alguma outra lei como língua oficial dos Estados Unidos?
  4. A Constituição dos EUA deveria declarar o inglês como língua oficial? Por que sim, ou por que não?
  5. Em sua opinião, qual a maior vantagem e/ou desvantagem em a língua inglesa não ser declarada como oficial na Constituição dos EUA?
  6. Quantos cidadãos dos Estados Unidos não falam inglês? Que evidências você pode apresentar para confirmar os números que apresenta?
  7. Até que ponto não declarar uma língua como oficial põe em risco as tradições nacionais de um Estado? Você pode apresentar alguma evidência para sua posição?
  8. Todos os cidadãos norte-americanos falam inglês como língua materna?

Você consegue imaginar a pergunta nº 1 servindo como base para o início bem-sucedido duma discussão crítica numa aula de História ou Sociologia, por exemplo? E o que dizer sobre a questão proposta antes da enumeração das perguntas (das perguntas que sugiro abaixo, quais, em sua opinião, poderiam ser classificadas como problematizantes [...] e por quê?)?

Perceba que o tamanho do enunciado não necessariamente indica que a pergunta levará o aluno a uma reflexão sobre o tema proposto, muito menos a uma discussão de ideias. A pergunta de nº 3, e a dupla pergunta de nº 6, por exemplo, são comparativamente extensas, mas apelam apenas à memória do aluno, exigindo como resposta um dado ou informação presente em algum texto ao qual supostamente tenha tido acesso (texto que poderia ser escrito ou audiovisual, no caso do material que utilizamos de base para aquela discussão).

Note, também, a incidência de por que associado a outras expressões, como em “por que sim ou não?”, e de em sua opinião, ou de expressões semelhantes (como em “até que ponto...?”), nas perguntas que levam o aluno a formular uma opinião própria. Nem sempre, contudo, um “por que?” indica uma pergunta problematizante, já que o mesmo poderia apenas estar fazendo referência a uma resposta que não exija a formulação de opiniões e argumentos próprios. Por exemplo, poderíamos perguntar “Por que nem todos os cidadãos americanos falam inglês?”, e, quase certamente, poderíamos esperar respostas como “porque nem todos nasceram nos Estados Unidos”, ou “porque há muitos imigrantes e filhos de imigrantes no país”, ou ainda, “porque muitas pessoas têm deficiência auditiva e, por isso, não falam inglês”. Nenhuma dessas respostas, contudo, evidencia um esforço crítico por parte do aluno, nem facilita o início duma discussão de ideias.

Lembre-se que, na tipologia simplificada que utilizei aqui, perguntas problematizantes são aquelas que, necessariamente, levam a discussões e ao compartilhamento de múltiplas perspectivas. Assim, os enunciados das perguntas levantadas devem deixar claro que o que se espera dos alunos é que expressem suas ideias, suas perspectivas, com base, por exemplo, nos textos (escritos, pictóricos, audiovisuais etc) que serviram de base para a discussão.


Outras considerações

Algo que devemos sempre ter em mente quando nos engajamos com a pedagogia inquisitiva – especialmente se fazemos uso, por exemplo, de seminários socráticos – é o fato de que o que importa não é o número de perguntas feitas, mas sua qualidade para os objetivos que estabelecemos. Quando fazemos perguntas problematizantes – perguntas que estimulam o pensamento e, consequentemente, levam os alunos a produzir respostas mais longas –, a velocidade das aulas diminui. Isso significa que menos “matéria” é coberta em aulas como essas, apesar de, provavelmente, o que for tratado o ser de forma mais ampla. Ademais, os alunos possivelmente discutirão ideias não previstas pelo professor, o que exige não apenas uma preparação cuidadosa, como também um senso de humildade para reconhecer que não sabemos tudo.

Num seminário socrático com turmas da Educação Básica, por exemplo, alguns cuidados devem ser tomados. Se por um lado, o planejamento é indispensável, por outro não pode servir de “camisa de força” para as discussões em sala. Ao mesmo tempo em que devemos ter questões formuladas previamente para guiar a discussão, também não devemos servir de empecilho aos questionamentos levantados pelos alunos – desde que pertinentes ao tema tratado –, já que é justamente para que desenvolvam essa habilidade questionadora que utilizamos seminários socráticos.

Outro ponto importante a considerar é o da compreensão que o próprio professor tem de sua identidade profissional e do componente curricular que ensina. Se o professor se vê como uma autoridade inquestionável em sala, que exerce a função de “transmissor” de conhecimentos e descreve seu trabalho como sendo “dar aulas”, então, provavelmente, nada do que escrevi até agora fará sentido ou funcionará. Ademais, especialmente no caso das ciências humanas, se também enxerga o componente curricular que ensina de forma dogmática, compreendendo suas próprias perspectivas (digamos, uma escola filosófica, uma perspectiva política, uma tradição sociológica específica etc) como sendo inquestionáveis, facilitar a discussão livre de ideias contradirá sua visão de mundo e, possivelmente, será uma experiência não muito fácil.

O tema do papel desempenhado pelas perguntas no ensino-aprendizagem em geral e, especialmente na pedagogia inquisitiva, tem sido muito pesquisado no campo da Educação nos últimos cinquenta anos. Aqui, quis apenas ajudar meus leitores e leitoras a refletirem um pouco sobre o tema de forma simplificada. Ainda voltarei a este tema no futuro.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Ensino-aprendizagem Inquisitivo e as Ciências Humanas e Suas Tecnologias na Educação Básica (1)


Gibson da Costa

Conte-me, e esquecerei; mostre-me, e lembrar-me-ei; envolva-me, e entenderei.
(Antigo ditado anglófono)


Lembro-me duma conversa que tive com uma jovem professora de literatura há alguns meses atrás. Eu facilitara um minicurso sobre ensino como facilitação e, ao fim de nosso primeiro encontro (o minicurso durou 5 dias), ela me disse que era muito fácil falar em trazer os alunos para o centro do processo de ensino-aprendizagem, mas que fazer isso era mais difícil do que eu imaginava! Como resposta, disse-lhe que ela esquecera-se de considerar três fatos: 1) como ela, eu também ensinava a adolescentes e jovens, então partilhávamos de desafios comuns, e eu já testara os princípios que discutíramos; 2) aquele era o primeiro encontro, e ainda não havíamos discutido as práticas listadas em nosso programa; e, 3) ela talvez não percebera o tipo de atividades que realizáramos naquele primeiro encontro, já que algumas daquelas práticas listadas em nosso programa estavam sendo utilizadas, apesar de ainda não as havermos discutido. Posteriormente, fiquei extremamente feliz quando ela me escreveu, descrevendo sua experiência com algumas daquelas práticas em sala e a transformação que trouxera ao seu trabalho!

Aqui, gostaria de começar a tratar, brevemente, daqueles métodos, estratégias, abordagens etc que, em minha experiência, ajudam-me a tornar os estudantes o eixo central no processo de ensino-aprendizagem, e ajudam-me a transformar-me em facilitador nesse processo. Incluirei alguns dos temas abordados naquele minicurso ao qual fiz referência e que, de acordo com aquela jovem professora, ajudaram-na a transformar positivamente sua atuação e a de seus alunos em sala.

Antes de tudo, um aviso: Por mais que isso implique numa aparente contradição ante o fato de eu sugerir esta ou aquela abordagem didático-pedagógica, não tenho nenhum receio em afirmar que bons e experientes professores conhecem melhor suas turmas e suas circunstâncias do que qualquer autor, pesquisador ou observador externo. Eles sabem como suas turmas respondem às suas abordagens pedagógicas, conhecem os contextos nos quais exercem suas atividades profissionais e, por isso mesmo, podem planejar, adaptar e utilizar estratégias que melhor funcionem para suas circunstâncias particulares. Assim, quaisquer sugestões ou interpretações que eu faça dizem respeito às minhas próprias experiências em sala de aula. Elas têm funcionado para mim, sendo adaptadas quando necessário, em meus contextos até hoje. Mas exigem preparação, objetivos claros, planejamento, atenção, paciência, visão de longo prazo etc.

Discutirei, hoje, sobre um conjunto de abordagens ao processo de ensino-aprendizagem que traduzo, em português, como ensino-aprendizagem inquisitivo. O mesmo tem sido, há muito, objeto de discussão e uso na Educação Básica nos países anglófonos, especialmente nos Estados Unidos, e é parte integrante de minha herança escolar – tanto como estudante quanto como professor. E, provavelmente, não será completamente estranho à grande parte daqueles que estudaram em universidades brasileiras. Mas, do que se trata?

O ensino-aprendizagem inquisitivo é um conjunto de abordagens didático-pedagógicas que se focam em torno de questões geradas ou propostas coletivamente. Ao longo do processo, são dadas oportunidades para que os alunos ofereçam respostas a essas questões por meio da busca e organização de evidências, dados e informações advindas de diferentes fontes. Eles analisam essas evidências, dados e informações, levando em consideração as diferentes interpretações e perspectivas às quais foram expostos – apresentadas por outros alunos, por outro texto etc. A partir disso, formam opiniões, fazem julgamentos e chegam às suas próprias conclusões com base naquelas evidências, dados e informações. E, ao final, comunicam aos seus colegas suas conclusões etc.

Parece extremamente simples, mas não se engane. Esse tipo de ensino-aprendizagem exige um real deslocamento do foco em sala: do professor para os alunos. Aqui, não é o professor que domina as aulas, com alunos ouvindo suas explicações passivamente. Não! O professor fala menos e ouve mais; e, quando fala, explica menos e questiona/provoca mais. Sua voz não domina os ares da sala. A dos alunos, sim. Isso exige uma mudança tanto por parte do professor, quanto da dos alunos. O professor atua como um facilitador. Os alunos falam mais, mas sua fala deve ser informada e articulada – isto é, suas questões ou afirmações são baseadas nas evidências, dados e informações aos quais tiveram acesso. Trata-se duma verdadeira mudança da cultura escolar. Mas é possível – especialmente nos componentes curriculares da área de Ciências Humanas e Suas Tecnologias (nas quais é possível haver um nível maior de subjetividade nas discussões), mas não apenas nela.

Não há, entretanto, um único molde desse tipo de ensino-aprendizagem. Como escrevi um pouco acima, trata-se de “um conjunto de abordagens”, ou seja, uma variedade de formas para se levar a cabo um molde inquisitivo de ensino-aprendizagem. Spronken-Smith, Walker, Batchelor, O'Steen e Angelo (2012), pesquisadores da área, apresentam diferentes formas para categorizar esse tipo de ensino-aprendizagem. Em uma delas, por exemplo, categorizam-na com base na distinção entre três modos de inquisição (o sentido do termo “inquisição” aqui é averiguação metódica e rigorosa; inquirição; investigação; pesquisa – não o confunda com o termo como usado em “a Santa Inquisição”; há uma razão estética para eu escolher o termo como tradução do inglês “inquiry):
  • inquisição estruturada → na qual o professor oferece a questão, além de instruções sobre como se deve explorá-la;
  • inquisição guiadana qual o professor estimula a investigação com questões, mas são os estudantes que decidem como explorá-las;
  • inquisição aberta → na qual os alunos formulam as questões, identificam o que precisa ser conhecido, coletam e analisam as evidências, dados e informações, comunicam suas conclusões e avaliam a pesquisa.

Nesse tipo de classificação, fica claro que poderíamos utilizar atividades apropriadas ao tipo de turma e à experiência do professor. Pessoalmente, tenho utilizado a aqui chamada inquisição aberta com mais frequência, em grande parte porque meus alunos já conhecem a abordagem e estão familiarizados com ela, e a mesma já ser parte de meu imaginário didático-pedagógico e de meu repertório profissional (fazendo com que me sinta mais confortável com a autonomia dos alunos e o desafio que isso pode representar). Para quem tentará pela primeira vez, ou aqueles que não estão tão familiarizados com uma grande autonomia por parte dos alunos, talvez não devessem começar com uma abordagem de inquisição aberta, optando por dar mais experiência a seus alunos (e a si mesmos) antes de dar-lhes tamanha responsabilidade – alunos acostumados ao ensino expositivo tradicional tendem a sentir-se desconfortáveis com o ensino-aprendizagem inquisitivo por algum tempo, até que se acostumem.

Uma preocupação comum que tenho ouvido de vários professores é sobre o que fazer se alguns alunos não participam dos debates, estando sempre calados. É importante ter consciência de que nem todos os alunos participam oralmente. Eles não precisam falar para estarem participando. Muitas vezes, a audição atenta é sua forma de participação. Alguns anotam o que ouvem. Logo, nunca me preocupo simplesmente pelo fato de alguns alunos não se engajarem em discussões orais. Esforço-me para conversar com eles fora da sala de aula, para ouvir suas opiniões (o silêncio de alguns em sala pode indicar que não se sentem confortáveis com a discussão em grupo, mas, se abordados da forma certa, partilham suas opiniões conosco fora de sala). Já tive turmas nas quais alguns alunos nunca disseram nada em sala, mas em seus trabalhos escritos – ou em seu vídeo, por exemplo –, demonstravam que haviam compreendido as discussões e aprendido com as ideias de seus colegas. Da mesma forma, há sempre aqueles dois ou três alunos que dominam todas as discussões – quando esses parecem estar tomando o espaço de outros, intervenho de forma elegante, aproveitando-me de algum comentário para fazer uma pergunta a alguém específico. Respeitar diferenças inclui reconhecer as diferenças de personalidade de nossos alunos – uma preocupação exacerbada com disciplina pode nos fazer esquecer que os adolescentes não são todos iguais.

Apesar de a carga de preparação exigida de professores (e dos alunos) ser grande para este tipo de ensino-aprendizagem, há inúmeras vantagens, especialmente no que concerne às Ciências Humanas e Suas Tecnologia (Filosofia, Geografia, História e Sociologia) na Educação Básica. O processo inquisitivo promove uma diversidade de vozes na sala de aula, criando oportunidades para que os alunos expressem e compartilhem suas opiniões. Ademais, o engajamento neste processo ensina-os a encontrar, reconhecer, avaliar e utilizar evidências; além de ajudá-los na construção ou fortalecimento de sua autoconfiança.

Abaixo, listo, brevemente, algumas sugestões para a utilização da inquisição em sala de aula, resumindo aquilo que discuti com os cursistas que participaram no minicurso que facilitei e ao qual me referi no início deste texto.

Questionando:
  • faça perguntas abertas (sem “certo”/”errado”);
  • convide e seja receptivo a diferentes interpretações;
  • faça uso do questionamento para focar o debate;
  • pergunte aos alunos o que um certo texto ou fonte significa “para eles” individualmente (Ex.: O que, na sua opinião, isso significa? / O que isso significa para você?).

Como encorajar a voz dos alunos:
  • permita que os alunos dirijam a discussão;
  • use seus comentários para formular questões;
  • encoraje respostas que sejam pessoais e analíticas.

Como encorajar múltiplas respostas:
  • esteja atento(a) às diferenças de opinião;
  • repita os pontos de vista para enfatizar as discordâncias;
  • aguce a análise por meio da reformulação do debate;
  • lembre-se que não há conclusões claras, apenas argumentos claros.

Como construir uma cultura de respeito:
  • não permita ataques pessoais;
  • evite respostas como "certo!" ou "errado!";
  • arbitre as discussões de forma justa e equitativa.

Como apoiar alunos silenciosos/tímidos:
  • lembre-se que nem todos os alunos participam através da fala;
  • mantenha diálogo com os alunos fora da sala de aula;
  • organize discussões em grupos menores para construir sua confiança.


Posteriormente, relatarei uma aula específica para apontar como tudo isso pode ser utilizado numa aula real.




REFERÊNCIAS

SPRONKEN-SMITH, R.; WALKER, R.; BATCHELOR, J.; O'STEEN, B.; ANGELO, T. Evaluating student perceptions of learning processes and intended learning outcomes under inquiry approaches. In: Assessment & Evaluation in Higher Education, 37, vol. 1, 2012, p.57-72.

domingo, 4 de janeiro de 2015

Educação moral?


Numa conversa sobre educação, ouvi comentários de alguns colegas sobre questões relativas à moral que me deixaram confuso sobre se realmente conseguiam compreender o papel da moralidade na educação. Mesmo alguns pesquisadores da educação costumam, aparentemente, confundir a validade da preocupação moral na educação escolar com um antigo componente curricular ensinado durante o último regime militar brasileiro (a chamada “Educação Moral e Cívica”). Aqui, gostaria de brevemente explicar porque acredito que o que fazemos na escola pode ser identificado como educação moral.

Sei o quanto a maioria dos professores provavelmente odiaria me ouvir dizendo isso, mas o direi assim mesmo: o ensino dos componentes curriculares da área das chamadas “ciências humanas” está, inevitavelmente, entrelaçado a uma educação moral dos alunos. E não digo isso apenas para fazer um trocadilho com o nome da antiga matéria que se ensinava nas escolas brasileiras durante o último regime militar!

Se você ainda não desistiu de continuar a ler este texto, permita-me apresentar minha defesa.

Na escola, sempre que abordamos algum tema que lide com problemas que enfrentamos socialmente, no passado ou no presente – e a abordagem de tais tipos de temas ocorre com frequência na área das humanidades –, tomamos posições no que concerne a tais problemas (voluntária ou involuntariamente, favorável ou infavoravelmente, etc). Assim, se tratamos acerca de temas como escravidão, guerras, racismo, sexismo, liberdade de pensamento, discriminação religiosa, colonialismo, violência, trabalho infantil, migração etc, explícita ou implicitamente expomos nossa compreensão da natureza moral de tais questões. Se, em aula, por exemplo, condenamos o racismo, a violência e a exploração, seja por acreditarmos que sejam imorais, ou simplesmente porque somos obrigados pela legislação ou pelo senso de correção política, não importa – o que importa, aqui, é que essa condenação faz parte duma educação moral do aluno.

Felizmente, ainda não tive o desprazer de conhecer um professor ou professora que ensinasse a seus alunos que um ser humano de pele negra seja, cientificamente comprovado, inferior a um ser humano de pele branca, ou que não há nada errado em sair por aí resolvendo seus problemas por meio da força. Todos os professores e professoras que conheci até hoje na Educação Básica têm, felizmente, ensinado, explícita ou implicitamente, coerente ou incoerentemente, que há limites entre o moral e o imoral nas relações humanas – na Educação Superior isso se dá de forma distinta, onde já ouvi defesa de posições que, obviamente, não se poderia defender diante de crianças ou adolescentes. Todos esses professores e professoras, mesmo na Educação Superior – novamente, explícita ou implicitamente, coerente ou incoerentemente –, levam a cabo uma educação moral.

Quando, por exemplo, um professor universitário, que seja crítico do que chama de “moralismo religioso”, professa uma palestra acerca da condição da mulher na “sociedade patriarcal machista”, incitando reflexões e incentivando mudanças de comportamento, o que ele está fazendo é educação moral. Comparando isso ao que seria feito tradicionalmente por um religioso, por exemplo, suas premissas, suas razões, os detalhes de suas argumentações, e mesmo suas conclusões podem ser distintas, mas ambos estariam engajados num tipo de educação moral. O mesmo ocorre na escola. Você não precisa ser religioso, acreditar numa deidade, ou corresponder a todas as expectativas tradicionais de moralidade ou eticidade para se engajar no processo de ensino-aprendizagem moral. Só precisa ser humano!