quarta-feira, 7 de outubro de 2015

O devaneio a-histórico da "pureza" cultural

Em se tratando de cultura, poucas coisas me aborrecem mais do que a conversa entediante sobre “pureza” (isto é, a qualidade de ser sem corrupção, infecção, imperfeição, mixagem etc) que alguns insistem em levantar. Aquele devaneio a-histórico de que haja uma “cultura pura”, uma “língua pura”, um “estilo puro”, etc, é absurdo e idiótico. Não é à toa que mantenha uma relação tão estreita com noções racialistas e de supostas “purezas étnicas” – por exemplo, a ideia de que haja uma “cultura brasileira” pura e original, ou de que alguém deva ter “orgulho de ser brasileiro/sulista/nordestino”!

Aliás, a ideia duma brasilidade “pura” serve de modelo quase perfeito para a demonstração da fraqueza do “argumento” a favor da ideia de pureza cultural/étnica. Lembro-me das muitas vezes que vi/assisti/ouvi/li (especificamente nos E.U.A., no Reino Unido e na Dinamarca), anúncios turísticos vendendo o Brasil como a terra da praia, do samba, da cerveja, e do futebol – isso para não incluir aqui o apelo sexual feito por muitos daqueles anúncios. Refletindo os esteriótipos repetidos no dia a dia brasileiro, aqueles anúncios vendem ao público internacional – especialmente na América do Norte e na Europa –, mas também o fazem no Brasil a brasileiros, a imagem dum “povo” que aprecia e consome aqueles “presentes” como se não houvesse um amanhã!... O problema é que há milhões de brasileiros que não conhecem o mar – o que implica que não vão à praia (banhada pelo Atlântico) –, e inúmeros outros que não gostam de samba, de cerveja ou de futebol!

Desde a infância, os brasileiros aprendem, na escola e fora dela, o mito sobre uma formação étnica tripartite: os “brasileiros” (O que é isso, a propósito? Um pedigree?) adviriam do mix de três grupos/raças – a saber os [amer]índios, os portugueses e os africanos! [Mesmo com todas as reformas curriculares já feitas, isso ainda permanece!] Esse povo falaria apenas português. Professaria e praticaria apenas as fés cristã (e apenas em suas formas ocidentais), candomblecista e umbandista... Esqueçam que mais de duzentas línguas são faladas no Brasil, por brasileiros – e que muitos brasileiros, no Brasil, não falam português. Esqueçam que muitos brasileiros não professam ou praticam aquelas expressões religiosas majoritárias. Esqueçam os muitos brasileiros que não portam um sobrenome português ou luso-brasileiro, mas que têm apenas o Brasil como lar, até porque é o único país que conhecem!... O que são eles, afinal? Marcianos caminhando sobre a “Terra do Vale Tudo”?

...Essa é a imbecilidade da etiquetagem de seres humanos em categorias artificiais – um dos resultados da “a-historicidade” (porque trata-se duma negação da experiência histórica humana) de noções de “pureza” cultural/ética.

Essas noções de “pureza” têm uma ligação com muitas dos comentários que ouço, por exemplo, no que concerne à música, à literatura e à própria língua. Os comentários que engrandecem a MPB, o samba, o forró, etc, quando comparados a outras formas musicais – como o rock, o pop, o funk, a EDM etc –, como se esses fossem os “originais representantes” da brasilidade ou, pelo menos, da musicalidade brasileira, se sustentam sobre o equívoco de que a “cultura” seja imutável, permanente. A ideia de que se está desvirtuando a arte literária quando, por exemplo, uma obra canônica tem sua linguagem “atualizada” para um público jovem assenta-se sobre uma compreensão equivocada tanta da historicidade linguística quanto da “natureza” da arte literária (e já tratei disso aqui). E todos esses equívocos baseiam-se numa perspectiva de que a humanidade e suas criações – sim, a “cultura” é uma criação humana, ela não “caiu do céu”! – possam ser congelados ou petrificados no tempo e no espaço.

O mais interessante é observar que os defensores dessas ideias utilizam os meios digitais contemporâneos – criações de nosso tempo – para defender um retorno à pureza mítica. Quanta incoerência!… Que sejamos salvos dessa obsessão por “pureza” cultural/étnica!

+Gibson