Como
resposta a uma manifestação minha sobre as afirmações dum vlogger/autor brasileiro (guru duma nova geração autoproclamada
“conservadora”), um colega me enviou a ligação para um vídeo
no qual o mesmo autor discorre – em sua “civilizada” maneira! –
sobre aquilo que ele chama de “método sócio-construtivista”, ou
o que o resto de nós chama de “construtivismo”.
Abaixo,
responderei, brevemente, a algumas das perspectivas expostas no vídeo
– deixando de lado, por ter mais o que fazer da vida, as
recorrentes grosserias do nobre filósofo para com seu público.
1.
“Método sócio-construtivista”
O
construtivismo, em si, não é um método de ensino, é um conjunto
de teorias epistemológicas. Sobre essas – ou uma ou algumas dessas
– múltiplas teorias podem-se construir diferentes métodos de
ensino; assim, não há “o método construtivista de ensino”.
2.
“Para o método construtivista de ensino só existe
[sic] dois elementos em jogo: um é o aluno e o outro é o
mundo, que é o objeto.”
A
propósito, para alguém que ataca a “incorreção” gramatical
alheia como uma forma de “burrice”, é interessante como Carvalho
consegue cometer um erro de concordância verbal tão simples: ele,
talvez, não saiba que o verbo “existir” deve concordar em número
com seu complemento, assim “só existem
dois elementos”! Mas, como
não partilho da visão linguística do nobre filósofo e, assim, não
penso que as pessoas que violam a “gramática” normativa sejam
intelectualmente deficientes – se o fizesse, tanto ele quanto eu
seríamos intelectualmente deficientes –, analisemos sua afirmação:
Não,
para construtivistas não há apenas “dois elementos em jogo” no
processo de aprendizagem. Para compreender isso, temos de nos lembrar
de onde saem as ideias construtivistas. Temos de revisar um pouco da
história da filosofia.
Pensemos
sobre as questões epistemológicas da modernidade – isto é,
questões que lidam com a origem do conhecimento. No chamado
Ocidente, temos lidado, na modernidade, com três grandes tradições
que buscam oferecer uma explicação filosófica para o ser e o fazer
do conhecimento, e, consequentemente, para como aprendemos: A) a
tradição racionalista moderna, iniciada por René Descartes;
B) a tradição empirista, iniciada por John Locke; e, C) a
via media da tradição interacionista de Immanuel
Kant.
Explicando
cada uma dessas grandes tradições de forma muito breve – e,
portanto, deficiente –, poderíamos resumi-las da seguinte forma:
a) A
tradição racionalista moderna → o racionalismo
moderno emergiu como uma versão atualizada do idealismo platônico.
Para a tradição platônica, já trazíamos, desde antes do
nascimento, as ideias das coisas, que nossas almas já conheciam
desde sua vinda do mundo das ideias verdadeiras/perfeitas. Em sua
versão moderna, as ideias são compreendidas de forma mais ampla,
mas, ainda assim, como algo que trazemos ao mundo – ou seja, como
algo inato. Diferentemente do idealismo platônico, o racionalismo
moderno se baseia no raciocínio a partir da natureza desenvolvida na
modernidade. Em seu cerne, encontra-se a visão de que as únicas
fontes de conhecimento sejam, exatamente, a razão e o pensamento.
b) A
tradição empirista → opostamente ao racionalismo, o
empirismo compreende o conhecimento como algo que se obtém a partir
do mundo externo, por meio dos sentidos, da experiência. Assim, para
os empiristas, nasceríamos com uma mente sem conteúdos – uma
tábula rasa. O conhecimento seria obtido apenas através da
experiência com o meio e com os estímulos externos – ou seja, o
conhecimento viria do objeto, de forma passiva, para o indivíduo; o
objeto externo é, assim, a única fonte de conhecimento.
c) A
tradição interacionista
→ Immanuel Kant, em sua monumental “Crítica da razão pura”,
ofereceu uma solução para os reducionismos tanto do racionalismo
quanto do empirismo. Para Kant, tanto o sujeito quanto o objeto
externo desempenhariam um papel na formação do conhecimento.
Através da intuição recebemos as impressões dos objetos externos;
e, através do entendimento, articulamos essas impressões, aplicando
os conceitos que dão forma a esses objetos. Em outras palavras, o
conhecimento seria formado através da interação entre o pensamento
humano e a experiência sensorial. [Obviamente, a teoria do
conhecimento desenvolvida por Kant é muito mais complexa do que essa
simplificação, mas não é minha intenção aqui discuti-la –
apesar de sua fundamentalidade para o construtivismo.]
Essa
teoria epistemológica de Kant é a base filosófica para o
construtivismo, originalmente, a chamada “epistemologia
genética” de Jean Piaget. Piaget desenvolveu sua epistemologia
genética influenciado pela epistemologia de Kant, mas é importante
ter o cuidado de não sinonimizá-las – elas não são,
necessariamente, a mesma coisa. Obviamente, o construtivismo,
enquanto conjunto de teorias, recebeu contribuições importantes de
outros pensadores além de Kant e Piaget, como Vygotsky, Luria e
Wallon, por exemplo.
Mas,
voltando à afirmação de Carvalho, na abordagem construtivista,
aqueles dois elementos, tanto na formação do conhecimento quanto no
processo de ensino-aprendizagem escolar, são insuficientes em si
mesmos. É necessária a interação entre os dois; e, na escola,
essa interação ocorre por meio da facilitação oferecida pelo
professor.
3.
“… e, no fim, chegará a obter toda uma concepção
organizada do mundo a partir da [sic]
mero experimento espontâneo. […] Agora, toda esta escola
que foi adotada no Brasil, há cinquenta anos, e vê esses filhos das
p***** desse Jean Piaget, Emilia Ferreiro, Vygotsky,
Paulo Freire… todo esse bando de charlatão e vigarista [sic],
p****!… O ensino é
assim: o ensino não pode ser diretivo…”
Esse
é o tipo de afirmação feito por quem não conhece as teorias que
servem de base para o construtivismo. Os diferentes métodos
construtivistas não são espontaneístas ou não-diretivistas, como
assevera Carvalho. Piaget, por exemplo, ensinava que a aprendizagem é
“provocada” pelo professor. Para Vygotsky, o professor é o
“mediador” da aprendizagem. Para Wallon, é através da
“intervenção” planejada e informada do professor que ocorre a
aprendizagem na escola. Todos eles desmentem a afirmação do
candidato a filósofo da educação acima sobre qual seria a
perspectiva teórica construtivista.
4.
“… é pra isto que existe a figura do mediador, do professor…
sem o qual o aprendizado é impossível, impossível."
Nesse
ponto, posso concordar com o filósofo. Toda aprendizagem é sempre
mediada. Para o construtivismo, na escola, essa figura de mediador é
assumida pelo professor. Obviamente,
o professor não é o único mediador no processo de aprendizagem
duma criança, dum jovem ou dum adulto; ele o é no meio escolar.
É
importante, aliás, conceituar a própria mediação,
para evitarmos maiores incompreensões. O termo refere-se ao elo
(leia-se “ponte”, “ligação”) entre o sujeito e seu objeto
de aprendizagem – ou seja, é um processo de facilitação da
construção do conhecimento por um personagem extra nessa interação
entre o sujeito e o objeto. Isso
é parte essencial das teorias construtivistas, e só alguém que não
conheça as obras dos autores-chave dessa tradição poderia afirmar
o contrário.
5.
“Eu hoje mesmo tava [sic] lendo, a primeira página da Folha
de São Paulo, você tem uns vinte erro [sic] de gramática na
primeira página dum jornal, p****! Isso quer dizer que os
profissionais de idioma não sabem mais o idioma… E as pessoas
assim, elas não conseguem raciocinar…”
E
isso foi, na verdade, para fechar com chave de ouro! Nem falarei
sobre as perspectivas linguísticas abraçadas pelo pensador acima.
Não preciso, agora, comentar mais nada dito nesse vídeo. Só me
resta dizer que quando falamos, sem limites de bom senso, sobre tudo
– mesmo aquilo que não conhecemos –, corremos o risco de, além
de nos contradizermos, nos ridicularizarmos! Essa é uma lição que
mesmo os grandes “filósofos” deveriam aprender!
Gibson
da Costa