segunda-feira, 18 de julho de 2016

“Escola Sem Partido”: A vitrine da ignorância e da irreflexão teórica


Gibson da Costa


Tramita no Senado Federal o Projeto de Lei nº 193, de 2016, de autoria do Senador Magno Malta*, do Partido da República, pelo Estado do Espírito Santo. O Projeto de Lei trata do já conhecido programa “Escola Sem Partido” que tem seus apaixonados defensores nas ditas redes sociais. Aqui, gostaria de, brevemente, tecer alguns comentários sobre o tal projeto legislativo.

Para compreender minhas observações sobre o projeto, você pode acompanhar as informações disponibilizadas na página da Consulta Pública do mesmo, onde estão disponíveis tanto o texto do PL quanto as informações acerca de sua tramitação no Senado. O endereço é o seguinte: https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaomateria?id=125666

Em seu artigo 2º, enumeram-se os princípios que deveriam ser seguidos pela “educação nacional”. Este artigo trata-se, na verdade, duma reescrita do art. 3º da Lei nº 9.394/1996, conhecida como Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (a [des]conhecida LDB), que trata igualmente dos princípios que devem reger o ensino no país. As diferenças entre a lei vigente e a proposta são explicitadas já neste segundo artigo do Projeto de Lei. Para que as diferenças fiquem claras para você, exibirei, lado a lado, os dois artigos correspondentes – o artigo 3º da LDB e o artigo 2º do projeto aqui discutido.




O Projeto de Lei, no artigo 2º, inciso I, estabelece como um dos princípios reguladores da “educação nacional” a “neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado”. O enunciado é jurídica e teoricamente absurdo. Em primeiro lugar, uma lei qualquer não pode estabelecer princípios para o Estado – só a Constituição Federal pode fazê-lo. O inciso em questão não estabelece “neutralidade” para a educação, mas sim para o “Estado”. Trata-se, assim, duma aparente inconstitucionalidade! Apesar de eu poder supor o que se pretendia nesse inciso I, sua redação é absurda, assim como o é a compreensão que se esconde por trás daquelas palavras.

Mesmo sendo contrário ao partidarismo eleitoral por parte de professores (isto é, de transformar as salas de aula em palanques eleitorais, como, de fato, muitas vezes ocorre), é impossível esperar “neutralidade política” e “ideológica” absoluta na educação – seja por parte do Estado, dos estabelecimentos ou dos professores. Assim, o conteúdo desse inciso I contradiz, em parte, os conteúdos dos incisos II, III e IV seguintes, que estabelecem o “pluralismo de ideias no ambiente acadêmico”, a “liberdade de aprender e de ensinar”, e a “liberdade de consciência e de crença”. Ora, “pluralismo” e “liberdade”, em si, são princípios políticos e ideológicos; logo, se deve haver pluralismo e liberdade na sala de aula, haverá a imposição – no fazer pedagógico – de perspectivas políticas: as perspectivas do pluralismo e da liberdade! Entende a contradição?... Assim, é absurdo falar em “neutralidade”!

A “neutralidade” é uma exigência incoerente e absurda em qualquer atividade que se julgue intelectual ou científica. Quando aprendemos, ensinamos, pesquisamos e divulgamos conhecimento, o fazemos a partir de pressupostos, princípios, modelos, métodos, teorias específicos. E esses são todos baseados em ideologias. Essas ideologias são sistemas ideários que servem de base e alicerce para as diferentes formas de “ver” o mundo; elas servem de base para as compreensões científicas, sociais, culturais e políticas que moldam aquilo que chamamos de “educação” – assim como servem de base para o próprio Projeto de Lei comentado aqui. A inclusão desse requisito numa lei – isto é, o uso do termo “neutralidade” – só mostra o quão teoricamente desinformados estão seus autores e patrocinadores, e quão incoerentes são suas expectativas.

É interessante, ainda, observar as prioridades da proposta. Se compararmos o artigo 3º da LDB com o artigo 2º do Projeto de Lei em questão, veremos que não há real preocupação com “pluralismo” e “liberdade” no projeto (contrariamente, essa preocupação está muito explícita nos incisos I a IV, do art. 3º da LDB). Há, sim, uma explícita preocupação com temas referentes à sexualidade (leia o parágrafo único), e, implicitamente, uma preocupação com o trato de religiosidades discordantes do Cristianismo (leia o inciso VII, e tenha em mente os vários incidentes de protesto contra a discussão de religiões ditas “afro-brasileiras” e o próprio contexto e história do Senador que assina o projeto).

Leia todo o Projeto de Lei e perceberá que o que o mesmo faz é, na verdade, redefinir os conceitos de “pluralismo” e de “liberdade”!

O parágrafo único do art. 2º do Projeto de Lei é ainda mais risível do que os incisos que o precedem:

O Poder Público não se imiscuirá na opção sexual dos alunos nem permitirá qualquer prática capaz de comprometer, precipitar ou direcionar o natural amadurecimento e desenvolvimento de sua personalidade, em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo, sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero.

O que se lê por trás desse absurdo teórico é que podemos manipular a orientação emociono-sexual (chamada acima de “opção sexual”) de nossos alunos. Além de cometer o equívoco comum de se reduzir os aspectos relacionais entre emoção e sexualidade a apenas uma mecânica sexual, o texto da lei proposta define categoricamente esses aspectos como sendo uma “opção sexual”, o que, mais uma vez, contradiz o texto da própria proposta. Se a sexualidade humana resume-se a uma questão de “opção”, logo, não importaria “a identidade biológica do sexo”, já que se poderia, de qualquer forma, escolher sua sexualidade! Conhecendo as ideias que o Senador Magno Malta já explicitou em suas falas públicas sobre o tema, torna-se fácil perceber a confusão feita entre aquilo que chamei de “orientação emociono-sexual” e o de identidade de gênero.

Ademais, o que se quer dizer por “sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero”? A que “teoria de gênero” o texto se refere? À teoria utilizada pelo autor na escrita de seu Projeto de Lei? Ou se refere à teoria de gênero utilizada pelos professores de língua e literatura? Novamente, o uso duma noção tão ampla contradiz o “especialmente” do trecho citado – como pode-se vetar “especialmente” algo que não fica especificado? O conhecimento teórico do autor é tão baixo que ele se vê obrigado a utilizar a expressão “teoria ou ideologia de gênero”. [Ele não possui nenhum assessor com treinamento acadêmico suficiente para auxiliá-lo no uso duma linguagem apropriada?]

Mas ainda pior do que o texto do Projeto de Lei é o texto da Justificativa. Nela, o ilustre Senador se contradiz de forma explícita, em sua discussão de diferentes “liberdades”. Ademais, oferece a seguinte pérola doutrinária (na justificativa nº 4):

Liberdade de ensinar – assegurada pelo art. 206, II, da Constituição Federal – não se confunde com a liberdade de expressão. Não existe liberdade de expressão no exercício estrito da atividade docente, sob pena de ser anulada a liberdade de consciência e de crença dos estudantes, que formam, em sala de aula, uma audiência cativa;


O autor, aparentemente, não aprendeu que, de acordo com os princípios constitucionais do ensino (estabelecidos no art. 206 da Constituição Federal, que ele mesmo cita) e com o histórico do ordenamento jurídico brasileiro, os professores possuem a chamada “liberdade de cátedra” – ou seja, podem “livremente exteriorizar seus ensinamentos aos alunos, sem qualquer ingerência administrativa, ressalvada, porém, a possibilidade da fixação do currículo escolar pelo órgão competente” (MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 21.ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 786-787). Então, sim, a liberdade de ensinar se confunde com a liberdade de expressão – ao menos de acordo com a história jurídica brasileira desde, pelo menos, a Constituição Federal de 1934, que, em no artigo 155, declarava “É garantida a liberdade de cátedra”. A Constituição Federal de 1946 declara o mesmo, no art. 168, inciso VII; o que novamente repete-se na Constituição de 1967, art. 168, parágrafo 3º, inciso VI.

A Constituição Federal atual (1988), por sua vez, apesar de não prever explicitamente a “liberdade de cátedra”, implicitamente a inclui no texto do inciso IX do art. 5º, que declara que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Ou seja: sim, a liberdade de ensinar se confunde com a liberdade de expressão – e a declaração do Senador, em sua justificativa, é embaraçosamente equivocada. A liberdade de expressão do professor pode não ser absoluta, obviamente, mas – num Estado Democrático de Direito, como o é a República Federativa do Brasil – é parte indissociável do ofício docente.

Por essas e outras razões, às quais não posso me deter agora, afirmo que esse Projeto de Lei, assim como todo o movimento que lhe serve de base, é uma vitrine da ignorância e da irreflexão teórica que só cria entraves para a verdadeira liberdade e pluralidade de ideias – seja na sociedade como um todo, na vida do indivíduo, ou nas escolas, mais especificamente.

Diga NÃO ao Projeto de Lei nº 193/2016!!!


*NOTA: Apesar de eu tratar o Senador Magno Malta, aqui, como autor do Projeto de Lei, o texto não é de sua autoria. Trata-se do mesmo texto apresentado em outros projetos estaduais e municipais em várias partes do Brasil. Vide o sítio do "Projeto Escola Sem Partido".

quarta-feira, 6 de julho de 2016

Ensino de Literatura: brevíssimas observações


Não tenho tempo agora para responder a todas as questões levantadas pelos colegas que participaram do debate sobre ensino de Literatura, mas, brevemente, gostaria de fazer só algumas observações:

1) Não rejeito a abordagem cronológica apenas no ensino da Literatura; a rejeito também nos ensinos de História e de Filosofia. Até hoje, na maioria dos casos – há algumas exceções –, a abordagem temática tem funcionado em minha prática docente. A organização de obras e autores em períodos e movimentos é utilitária e, assim, pode ser substituída por outra forma de “classificação” (para aproveitar o termo utilizado na discussão). Minha intenção, enquanto professor de Literatura na Educação Básica, não é formar pseudo historiadores da Literatura, capazes apenas de marcar uma opção em perguntas de múltipla escolha: é, antes, formar leitores competentes, atentos, que saibam ler nas entrelinhas, e que desenvolvam um apreço pela leitura literária – de acordo com seus próprios gostos.

2) Note que me referi à abordagem cronológica – que alguns chamaram equivocadamente de “abordagem historiográfica” (e digo “equivocadamente” porque uma abordagem não se torna “historiográfica” simplesmente por fazer uso de dados cronológicos!) – apenas no que concerne ao ensino na Educação Básica. Obviamente, se estivéssemos formando historiadores da Literatura, necessitaríamos nos preocupar, até certo ponto, com dados cronológicos. Mas esse não é o caso na escola.

3) Não poderia ser mais direto acerca de minha posição e prática do que fui naquela discussão. Na maioria das escolas brasileiras onde há alguma forma de “instrução” literária, essa se resume a uma aula de cerca de cinquenta minutos semanais. Se olharmos para as propostas curriculares, e mesmo para os livros didáticos – ou melhor, os “ditadores das aulas” (considerando que, frequentemente, são esses materiais que ditam não apenas o que deve ser ensinado, mas também como deve ser ensinado!) –, veremos que o curtíssimo tempo das aulas de Literatura não nos permitiria tratar de todo aquele conteúdo e, ao mesmo tempo, formar leitores literários. Então, há de se fazer uma opção. A minha opção tem sido sempre a de facilitar a formação de leitores literários – a história literária, no caso específico da escola, torna-se, em minha prática, apenas uma ferramenta secundária. Honestamente, não me envergonho de minha opção!

4) É aí que entra a teoria. As concepções “teóricas” que abraçamos – e por “teóricas”, aqui, me refiro à visão que temos da realidade, que não é necessariamente tão sistemática quanto as chamadas “teorias” que utilizamos no meio acadêmico e/ou científico – estão indissociavelmente atreladas ao processo de leitura. Todos nós projetamos sobre os “textos” que “lemos” nossa visão de mundo; e, no caso específico da Literatura, nós professores projetamos nossas bases teóricas (agora, sim, da Teoria enquanto construção filosófica) sobre os textos que lemos e discutimos em sala. É por essa razão que, para mim, se faz necessário informar aos estudantes acerca de minhas fontes teóricas, da diversidade de visões teóricas e que, portanto, é possível se chegar a compreensões diversas dum mesmo texto. Isso nem sempre é fácil, mas é possível.

Essa é uma discussão política deveras complexa e que, como viram, leva a manifestações nem sempre muito gentis entre colegas de profissão. Posso resumi-la a um ponto crucial: eu, enquanto professor, não sou um ditador intelectual – sou um facilitador da aprendizagem; assim, me recuso a imaginar que meus alunos não sejam capazes de lidar com ideias e com o conhecimento!

Assim que tiver mais tempo, responderei às questões que me enviaram.

Grande abraço!

Gibson da Costa