terça-feira, 23 de agosto de 2016

Língua na escola: uma explicação de meu trabalho a pais, estudantes e colegas



Gibson da Costa

Porque um estudante, recentemente, pediu-me uma breve explicação de minha “didática” – com o que imagino que quisesse se referir a minhas perspectivas linguísticas e pedagógicas –, exponho brevemente, aqui, as compreensões linguísticas que trago à minha prática pedagógica e, consequentemente, às minhas abordagens em sala de aula.

O ensino de língua na escola, em minha compreensão e prática, fundamenta-se sobre três eixos básicos: a leitura, a produção textual (escrita) e a análise linguística. Os três se inter-relacionam, já que não podem, isoladamente, “dar conta” do desempenho linguístico esperado duma pessoa escolarizada.

As expectativas sociais relacionados ao ensino de língua na escola geralmente podem se resumir em ajudar os estudantes a ler e escreverbem”. Pessoalmente, entretanto, prefiro pensar que meu objetivo, enquanto professor de língua – mas também enquanto professor das humanidades –, seja o de facilitar a ampliação de competências linguísticas e outras dos (e pelos) alunos.

Em minha compreensão, não cabe apenas ao professor de língua a facilitação da ampliação de competências linguísticas. Tudo o que fazemos no meio educacional é linguístico; todos – estudantes e professores dos mais diferentes componentes curriculares –, afinal, dependemos da língua (em qualquer de suas formas) para a realização do processo de ensino-aprendizagem. Assim, professores de todos os diferentes componentes curriculares (as “matérias” escolares) são, de alguma forma, também professores de língua – por mais que não possuam formação linguística específica, que não percebam isso ou que não sejam vistos como tais.

Também é importante deixar claro que não enxergo o trabalho do professor como sinônimo de um simples “ensinador” – se com o verbo “ensinar” refira-se a alguém que despeje seu conhecimento sobre mentes vazias e incompetentes. Não. O trabalho do professor, em minha compreensão, é o de facilitar a ampliação daquelas habilidades e competências que os estudantes trazem para a escola. Ou seja, aquilo que chamamos de “ensinonão consiste em “transmitir” ou “transferir” informações aos estudantes (como se os estudantes não passassem de antenas); mas, sim, em ajudar os estudantes a ampliarem o conhecimento que já têm do mundo – no caso específico da língua, a ampliarem sua compreensão, conhecimento e uso em função, por exemplo, dos diferentes contextos nos quais podem se encontrar em suas relações sociais.

O ensino linguístico – assim como o ensino de qualquer outro campo escolar – pode oferecer um caminho de libertação intelectual ou, contrariamente, um caminho de prisão a tradições que rejeitam todo o conjunto de conhecimentos que se têm desenvolvido nos últimos séculos. O ensino de língua, talvez mais do que qualquer outro campo, tem sido – muitas vezes – um território onde velhos preconceitos culturais e sociais insistem em permanecer no meio escolar. Assim, muitas vezes, o autoritarismo hierárquico se esconde por trás duma visão de “gramática” que rejeita, por exemplo, pesquisas linguísticas e psicológicas sobre o fenômeno linguístico; se esconde por trás duma visão do que seja “literatura” que rejeita estudos acadêmicos sobre o fazer literário.

A escola, em minha visão, é o ambiente onde o conhecimento não especializado do estudante deve se encontrar e ser alargado pelo conhecimento especializado do campo de dado componente curricular. Assim, seu conhecimento e uso da língua, e o conhecimento não especializado dito “tradicional” (aquele que, por exemplo, dita ao estudante o que é linguisticamente/gramaticalmente “certo” ou “errado”) que ele herda de seu meio sociocultural, deve ser ampliado pelo conhecimento especializado que será adaptado pelo professor à comunidade de estudantes da Educação Básica (Ensinos Fundamental e Médio).

E é exatamente isso – a ampliação de habilidades e competências – que intenciono com as atividades que frequentemente proponho aos estudantes. Em minha visão e experiência, é mais interessante e recompensador para os estudantes aprenderem a usar a chamada variedade culta da língua defendendo seu ponto de vista pessoal sobre um problema real num texto dissertativo-argumentativo do que fazerem exercícios de análise sintática em sala de aula. Afinal de contas, queremos usuários competentes da língua ou queremos formar, nos Ensinos Fundamental e Médio, professores de gramática prescritiva/normativa?

Ficarei deveras feliz se souber que um ex-estudante foi capaz, após ter terminado a Educação Básica, de compreender um contrato, escrever uma solicitação a um órgão público, falar ao telefone com um cliente, convencer um ouvinte, utilizar suas competências linguísticas para adentrar o universo acadêmico ou profissional. Esse é o “sonho” de qualquer professor com minha formação e experiência. Não ensino língua, na Educação Básica, para que os estudantes saibam dar nomes a cada uma das classes de palavras ou a todas as classificações verbais possíveis – esse é um tipo de conhecimento que espero de mim mesmo, como professor, e não dos estudantes.

Minha prática em sala de aula, obviamente, está condicionada por minha formação intelectual e profissional multifacetada. Também possuo formação e atuo em outras áreas de conhecimento. E todas elas se intercruzam quando ensino Língua ou Literatura. A História, as Ciências Sociais, a Teologia, a Filosofia, a Psicologia e a Geografia frequentemente adentram minhas “aulas” de Língua e Literatura. Minha formação não me permite abordar os componentes curriculares escolares – as “matérias” escolares – como campos isolados uns dos outros. Seu isolamento só pode existir nos pequenos compartimentos mentais que somos treinados a construir na escola. Eu me recuso a facilitar a construção de tais compartimentos em minha relação com os estudantes.

Essa é a razão por que debates, pesquisas e textos dos mais variados gêneros são e continuarão a fazer parte de nossas aulas. Não sou adestrador de animais domésticos; sou professor de seres humanos. Não esperem que eu adestre seres humanos: eu apenas tento facilitar seu caminho rumo à autonomia que deve marcar o ser humano!

domingo, 7 de agosto de 2016

Ainda sobre o "Escola Sem Partido": resposta a uma colega professora


Gibson da Costa


Cara Sandra,

Como você já pode imaginar, discordo frontalmente de sua opinião. E permita-me expor minhas razões.

Projetos de Lei como esse do ESP não representam uma “solução” para a educação brasileira. Em primeiro lugar, o uso que você faz do termo “solução” implica que haja um “problema”, mas você não identificou a que problema se referia. Em segundo lugar, mesmo que eu acreditasse que houvesse um problema “fundamental” com a educação, lei alguma poderia dar conta de todos os problemas que possam haver numa determinada área da vida social, como a educação.

Trata-se, na verdade, duma questão de visões distintas de mundo e, mais especificamente, do que significa ser um humano. Por exemplo, ao tratar professores como “manipuladores”, o discurso do ESP explicita sua visão dos estudantes: seres passivos, não reflexivos, que são “manipuláveis” – ou seja, não têm nem um pensamento próprio, nem responsabilidade para com suas próprias escolhas. Assim, para mim, o ESP só reforça um problema real que existe na sociedade brasileira como um todo e que, obviamente, se reproduz na escola. O nome desse problema é: AUTORITARISMO.

Voltemos ao art. 2º, inciso III, do Projeto de Lei nº 193/2016 do Senador Magno Malta – ou dos projetos assinados, com o mesmo texto, por diferentes vereadores, deputados estaduais e federais. Nele, se estabelece o princípio da “liberdade de aprender e de ensinar”. Agora, compare isso ao art. 3º, inciso II, da LDB (Lei nº 9394/1996), que, por sua vez, estabelece como princípio a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber”. A diferença, que é explícita, chega a representar uma “violência simbólica”: a liberdade proposta pelo ESP é apenas a “liberdade” de receber e de transmitir “conteúdos” (na realidade, poderíamos até mesmo discutir as noções de “liberdade” e de “conteúdo” que se escondem por trás dos projetos de lei e dos discursos dos partidários do ESP).

O que o ESP propõe é “desintelectualização” do ensino e da aprendizagem – e, consequentemente, sua desumanização. Sua visão não é de um professor pesquisador, autor, pensador. O professor do ESP é um mero transmissor de “conteúdos”. Ele recebe uma informação pronta e acabada de alguém que esteja numa posição hierárquica superior – os autores de livros didáticos (livros esses utopicamente higienizados de traços ideológicos com os quais os ESPistas discordam) ou sei lá mais quem! – e os transmite aos seus alunos.

Os alunos, por sua vez, são apenas receptores nessa cadeia transmissora de informações empacotadas. Eles são meros produtos duma tradição. Devem conhecer e seguir as regras, as normas, os ditos, o “certo”. Por isso, para os adeptos e defensores dessa visão diminuta da humanidade, ensinar e aprender limita-se a transmitir e memorizar fatos – sem crítica, sem questionamentos, sem provocações. Se pudessem, se desfariam de todos os professores e fabricariam o “mestre novo”: a máquina que conhece seu lugar (como retransmissor duma tradição construída para silenciar o lugar do ser humano) e sabe colocar o estudante em seu próprio lugar (como humano submisso à hierarquia dos que sabem mais do que ele e do que seus professores – a hierarquia autora do próprio ESP).

Assim, a deseducação proposta pelo ESP é aquela levada a cabo por um professor que não provoca. O aluno que o ESP quer produzir é aquele que não discorda (na verdade, só discorda se o professor for uma dessas criaturas etéreas que os apoiadores do projeto chamam de “esquerdista” ou “comunista” – e que seria todo aquele que discorda da visão de mundo proposta pelo ESP). Tudo segue o rito estabelecido na cartilha da hierarquia autoritária: uns falam, outros ouvem; uns mandam, outros obedecem!

Essa é a “solução” proposta pela ideologia do Escola Sem Partido! A “solução final” para a educação brasileira!

Você se refere a um “filósofo” que apoia o movimento. Como um “filósofo” pode apoiar o não questionamento? Ninguém que apoie a criminalização da expressão de ideias e conceitos pode ser tomado como “filósofo”. É, no máximo, uma fraude com um bom trabalho de marketing! Ele pode ser aplaudido por sua audiência, admiradora dos termos sofisticados e das assombrosas referências que faz aos “comunistas” (termo genérico aplicado a qualquer um que discorde de sua visão de mundo) ou, quando tenta ser mais elegante, aos “socialistas fabianos”, mas o que é sua mensagem além de um apelo ao autoritarismo ideológico?!

A propósito, uma maneira de selecionar o que escutamos – o que, em si, é uma atividade intelectual – é justamente sabermos quem nos fala. Quais são as ideias que essa pessoa defende? O que essa pessoa faz? Como ela ganha a vida? Por que ela diz o que diz? Quem apoia o que essa pessoa faz? Quem ela mesma apoia?

Por exemplo, não é curioso que os autores e defensores desses projetos de lei patrocinados pelo ESP – incluindo o citado “filósofo” – não incluam professores? Como essas leis se dirigem a professores da Educação Básica, seria razoável esperar que entre seus autores e apoiadores houvesse professores da Educação Básica (as pessoas que têm formação, conhecem a vida escolar, a atuam na sala de aula regular). Mas, não há. E o “filósofo” que você cita não é professor do ensino regular – nem no Brasil, nem onde vive!

Posso deixar claro o que penso que você deve saber a meu respeito:

Sou um professor. Ensino na Educação Básica e Superior. Não estou ligado a políticos. Não trabalho para partidos políticos ou candidatos políticos. Mas, obviamente, abraço um conjunto de ideias filosóficas que moldam minha visão política.

Acredito na liberdade de opinião e de expressão de opinião, e a defendo em minha prática. Minhas crenças filosóficas, religiosas e políticas, e minhas perspectivas teóricas, não são impostas a meus alunos e alunas como a única opção aceitável; mas elas, obviamente, estão presentes em tudo o que faço. E isso ocorre porque sou um ser humano, e não uma máquina. Por mais que queira e me esforce para manter um ambiente de abertura na sala de aula, ainda sou um indivíduo – ou, se preferir, um “sujeito histórico” –, o que implica que estou condicionado pelo que conheço e experiencio do e no mundo. E é exatamente por isso que considero a exigência duma suposta “neutralidade” como uma aberração irracional.

Nunca neguei que, de fato, houvesse professores que faziam apologias partidárias em sala de aula. Há professores que o fazem. Há professores que impõem sua compreensão filosófica como a única aceitável, correta, certa. Mas esses professores são uma minoria. E os que o fazem, são partidários das mais diferentes visões políticas; coletivamente, (possivelmente) sofrem de uma formação deficitária, e, individualmente, de um deficit ético. O problema na formação desses professores é o mesmo presente nas propostas do ESP: a visão da educação como um instituto autoritário, no qual o professor é um (re)transmissor e o estudante é um receptor.

Contudo, reconhecer que haja professores que “imponham” uma única visão da realidade social a seus alunos não é equivalente a dizer que esses estudantes sejam “manipulados”. Eles, em sua maioria, não o são. E não o são porque pessoas psicologicamente saudáveis não são “manipuláveis” como marionetes. Os estudantes não chegam à escola como tábulas rasas. Eles conseguem compreender o mundo ao seu redor. A eles podem faltar conceitos sofisticados e um conhecimento da “gramática teórica”, mas, ainda assim, são capazes de legitimar ou deslegitimar discursos. Negar isso, dizendo que os estudantes são “manipulados” pelos professores, é negar sua humanidade e sua capacidade de autonomia.

Então, se quer uma sugestão minha para lidar com as questões levantadas pelo ESP, talvez devêssemos começar por fazer um pacto – os professores, os pais, a escola, as autoridades educacionais, o ESP, o Poder Legislativo etc – pela autonomia do estudante. Os estudantes não são ratos de laboratório; são seres humanos e, assim, podem entender muito mais do que os legisladores e seus apoiadores conseguem imaginar. E nós, professores, já sabemos disso há muito tempo. Já está mais do que na hora de pôr o que sabemos sobre aprendizagem, sobre o desenvolvimento cognitivo de crianças e adolescentes em nossa própria prática. Sejamos plenamente honestos com nossos estudantes: ESP, confesse aos jovens estudantes suas intenções autoritárias! Professores “manipuladores”, confessem aos seus alunos de onde saíram suas visões de mundo!... Verdadeiros professores: façamos nosso trabalho – é um direito de nossos estudantes!