Gibson
da Costa
Todos
os anos, escrevo demais sobre a I.T. (insanidade da testagem) que
assola nossos sistemas de educação. Não direi mais (quase) nada
novo; minha criatividade é limitada. Mas tenho algumas perguntas a
fazer:
1)
Não é engraçado que as provas do ENEM e de vestibulares se baseiem
na premissa de que os estudantes do Ensino Médio brasileiro aprendam
matemática, química, física e língua estrangeira – apenas para
citar os exemplos mais óbvios – no nível exigido nesses testes,
independentemente de seu local de origem, tipo de escola, etc?
[Esqueçam, por um instante, a avaliação socioeconômica que também
é levado em consideração quando da atribuição de notas.]
2) O
que as instituições testadoras – o INEP/MEC, no caso do ENEM, ou
as instituições superiores, no caso dos vestibulares – dizem aos,
e acerca de, os candidatos quando os tratam como “bandidos”,
revistando-os, coletando suas impressões digitais etc? Eles são
estudantes ou ladrões e assassinos?
3)
Ainda sobre a pergunta anterior, os que abraçam a ideologia
brasilo-burguesa dirão que a segurança se justifica pelo fato de
haver grupos que tentam tirar proveito das provas. Respondo com outra
pergunta: Não seria melhor, então, encontrar outro caminho que não
essas provas que não “provam” absolutamente nada de relevante,
mas que funcionam muito bem como túnel excludente para aqueles que
buscam a oportunidade de educação superior numa instituição
pública?
4)
Por que razão os estudantes deveriam pagar para se candidatarem ao
ingresso numa instituição pública? Se a educação é um direito
do cidadão, e a educação superior pública é mantida por meio dos
impostos pagos por todos os cidadãos, não seria razoável esperar
que os candidatos pudessem concorrer a um lugar sem pagar por isso?
[Sim, conheço as justificativas quanto aos gastos administrativos
referentes às provas – mas essas são impostas pelas instituições,
logo, deveriam ser plenamente custeadas por elas próprias!]
5)
Agora não mais uma pergunta, mas uma colocação direta: O Brasil
tem uma tradição de seletividade excludente que parece se basear
naquilo que chamei acima de “ideologia brasilo-burguesa” (a
ideologia belicista de autodefesa característica da “burguesia”
brasileira) – isto é, os grupos dominantes brasileiros sempre
dificultaram o acesso à educação superior aos grupos menos
favorecidos, o que historicamente tem se manifestado através dos
dispositivos de testagem, e os preços cobrados para tomar parte
nesses, utilizados pelas instituições educacionais. A seletividade
é tamanha, e tão naturalizada, que mesmo profissionais altamente
instruídos do campo educacional se manifestam contrariamente a
qualquer crítica ao instituto da testagem – não percebendo que o
mesmo contradiz aquilo que muitas vezes proclamam como sua visão
política maior.
6) O
ENEM, por exemplo, não é um instrumento de acesso equitativo à
educação, principalmente porque não reflete a realidade da maioria
das escolas públicas e mesmo privadas do Brasil. Ele é feito para
reprovar. Quando se aplica uma prova como teste de admissão,
espera-se que a mesma desempenhe um papel de filtragem. Como o ENEM
serve como teste de admissão, sua missão é ser esse filtro, ou
seja, é ser um agente de exclusão, de reprovação. As
universidades não deveriam ser o lugar aonde vão aqueles que querem
aprender? Ou deveriam ser apenas o gueto para os socioculturalmente
afortunados ou, pelo menos, para os treinados pela indústria do
pré-ENEM/pré-vestibular?
7)
Aos que pensam que os estudantes frequentemente adentram o ensino
superior despreparados, uma informação: de fato, as escolas
brasileiras não preparam seus estudantes para pensarem
independentemente ou escreverem com competência crítica; ela mal é
capaz de ensinar os conteúdos formais (isso, infelizmente, algumas
vezes também ocorre na educação superior). É aí que entra o
papel da educação como instrumento de inclusão: a universidade tem
de se adaptar às necessidades de seus estudantes, e não os excluir
por não estarem “prontos” para ser parte do gueto intelectual. E
é justamente essa exclusão que se patrocina com a tradicional
testagem de admissão (ENEM ou vestibulares).
8)
Eu não preciso dizer que há formas menos excludentes de oportunizar
a educação superior ou profissional para os cidadãos do que o
humilhante ritual da testagem que vemos nos períodos de ENEM ou
vestibulares. Mas, novamente, esse não é o interesse dos grupos
dominantes e daqueles que compram sua retórica. Afinal, o que seria
das economias de certas instituições sem as taxas do ENEM,
vestibular e concursos? O que seria do ganho dos empresários da
indústria dos “Pré-”tudo e daquelas escolas que anunciam que
seus alunos foram aprovados na admissão à instituição tal? O que
seria daqueles professores que ensinam aulas particulares para os
candidatos a esses exames?… Há inúmeros motivos para que esses
exames não sejam eliminados ou repensados – incluindo a
justificativa excludente de que não há vagas para todos os que
gostariam de estudar em instituições públicas (ou não há bolsas
para os que queiram fazê-lo em instituições privadas), e por isso
mesmo deve haver um instrumento de seleção. A educação, então,
trabalha como canal de exclusão, segue a trilha oposta à sua
própria ideia. Quem ou o que nos salvará?