segunda-feira, 7 de novembro de 2016

ENEM, vestibular e exclusão: algumas questões políticas



Gibson da Costa

Todos os anos, escrevo demais sobre a I.T. (insanidade da testagem) que assola nossos sistemas de educação. Não direi mais (quase) nada novo; minha criatividade é limitada. Mas tenho algumas perguntas a fazer:

1) Não é engraçado que as provas do ENEM e de vestibulares se baseiem na premissa de que os estudantes do Ensino Médio brasileiro aprendam matemática, química, física e língua estrangeira – apenas para citar os exemplos mais óbvios – no nível exigido nesses testes, independentemente de seu local de origem, tipo de escola, etc? [Esqueçam, por um instante, a avaliação socioeconômica que também é levado em consideração quando da atribuição de notas.]

2) O que as instituições testadoras – o INEP/MEC, no caso do ENEM, ou as instituições superiores, no caso dos vestibulares – dizem aos, e acerca de, os candidatos quando os tratam como “bandidos”, revistando-os, coletando suas impressões digitais etc? Eles são estudantes ou ladrões e assassinos?

3) Ainda sobre a pergunta anterior, os que abraçam a ideologia brasilo-burguesa dirão que a segurança se justifica pelo fato de haver grupos que tentam tirar proveito das provas. Respondo com outra pergunta: Não seria melhor, então, encontrar outro caminho que não essas provas que não “provam” absolutamente nada de relevante, mas que funcionam muito bem como túnel excludente para aqueles que buscam a oportunidade de educação superior numa instituição pública?

4) Por que razão os estudantes deveriam pagar para se candidatarem ao ingresso numa instituição pública? Se a educação é um direito do cidadão, e a educação superior pública é mantida por meio dos impostos pagos por todos os cidadãos, não seria razoável esperar que os candidatos pudessem concorrer a um lugar sem pagar por isso? [Sim, conheço as justificativas quanto aos gastos administrativos referentes às provas – mas essas são impostas pelas instituições, logo, deveriam ser plenamente custeadas por elas próprias!]

5) Agora não mais uma pergunta, mas uma colocação direta: O Brasil tem uma tradição de seletividade excludente que parece se basear naquilo que chamei acima de “ideologia brasilo-burguesa” (a ideologia belicista de autodefesa característica da “burguesia” brasileira) – isto é, os grupos dominantes brasileiros sempre dificultaram o acesso à educação superior aos grupos menos favorecidos, o que historicamente tem se manifestado através dos dispositivos de testagem, e os preços cobrados para tomar parte nesses, utilizados pelas instituições educacionais. A seletividade é tamanha, e tão naturalizada, que mesmo profissionais altamente instruídos do campo educacional se manifestam contrariamente a qualquer crítica ao instituto da testagem – não percebendo que o mesmo contradiz aquilo que muitas vezes proclamam como sua visão política maior.

6) O ENEM, por exemplo, não é um instrumento de acesso equitativo à educação, principalmente porque não reflete a realidade da maioria das escolas públicas e mesmo privadas do Brasil. Ele é feito para reprovar. Quando se aplica uma prova como teste de admissão, espera-se que a mesma desempenhe um papel de filtragem. Como o ENEM serve como teste de admissão, sua missão é ser esse filtro, ou seja, é ser um agente de exclusão, de reprovação. As universidades não deveriam ser o lugar aonde vão aqueles que querem aprender? Ou deveriam ser apenas o gueto para os socioculturalmente afortunados ou, pelo menos, para os treinados pela indústria do pré-ENEM/pré-vestibular?

7) Aos que pensam que os estudantes frequentemente adentram o ensino superior despreparados, uma informação: de fato, as escolas brasileiras não preparam seus estudantes para pensarem independentemente ou escreverem com competência crítica; ela mal é capaz de ensinar os conteúdos formais (isso, infelizmente, algumas vezes também ocorre na educação superior). É aí que entra o papel da educação como instrumento de inclusão: a universidade tem de se adaptar às necessidades de seus estudantes, e não os excluir por não estarem “prontos” para ser parte do gueto intelectual. E é justamente essa exclusão que se patrocina com a tradicional testagem de admissão (ENEM ou vestibulares).

8) Eu não preciso dizer que há formas menos excludentes de oportunizar a educação superior ou profissional para os cidadãos do que o humilhante ritual da testagem que vemos nos períodos de ENEM ou vestibulares. Mas, novamente, esse não é o interesse dos grupos dominantes e daqueles que compram sua retórica. Afinal, o que seria das economias de certas instituições sem as taxas do ENEM, vestibular e concursos? O que seria do ganho dos empresários da indústria dos “Pré-”tudo e daquelas escolas que anunciam que seus alunos foram aprovados na admissão à instituição tal? O que seria daqueles professores que ensinam aulas particulares para os candidatos a esses exames?… Há inúmeros motivos para que esses exames não sejam eliminados ou repensados – incluindo a justificativa excludente de que não há vagas para todos os que gostariam de estudar em instituições públicas (ou não há bolsas para os que queiram fazê-lo em instituições privadas), e por isso mesmo deve haver um instrumento de seleção. A educação, então, trabalha como canal de exclusão, segue a trilha oposta à sua própria ideia. Quem ou o que nos salvará?